O Contestado, movimento histórico de Santa Catarina comparado à Guerra de Canudos e um dos mais emblemáticos do país, pode ter perdido uma batalha importante. A região do Meio Oeste, cenário do sangrento episódio que entre 1912 e 1916 dizimou milhares de moradores na divisa de Santa Catarina e do Paraná, perdeu a referência do nome Vale do Contestado.

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A área passou a se chamar Vale dos Imigrantes. Tornou-se a 13ª região turística de Santa Catarina, sendo oficialmente reconhecida pelo Ministério do Turismo e integrante do Mapa do Turismo Brasileiro 2019. A decisão foi tomada em reunião da Instância de Governança Regional (IGR) do Vale do Contestado, uma espécie de representação do setor turístico nas regiões que conta com a participação de diferentes gestor

O professor do curso de Geografia da Universidade Estadual de Londrina (UEL), Nilson Cesar Fraga, estuda a região e a Guerra do Contestado há 25 anos. Para ele, a alteração é “um atentado contra a formação do povo catarinense”.

— A mudança não é apenas grave: é vergonhosa para Santa Catarina. A partir do momento em que o Estado, sendo multicultural e multiplural, se permite eliminar um grupo formador de sua população para garantir uma ideia que é eminentemente fruto de uma colonização europeia configura-se um atentado contra a formação do povo catarinense — diz Fraga.

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O pesquisador afirma que a mudança foi promovida sem debate e anuência da população, das organizações civis e mesmo de outras instituições de turismo e de ensino. Ele considera que a alteração retira a importância do Contestado que foi recolonizado a partir da Guerra. O conflito foi marcado pelo massacre de caboclos, posseiros, indígenas e pequenos proprietários rebelados, por forças do Estado a serviço dos interesses de empresas multinacionais e grandes proprietários de terras, deixando marcas sociais e econômicas na região até hoje.

Um dossiê formulado por Fraga foi entregue ao Ministério Público e está sendo analisado na 1ª Promotoria de Justiça de Joaçaba. Também foram entregues cópias para deputados estaduais e da bancada catarinense em Brasília. De acordo com o autor, a expectativa é de que a denúncia e a ampla discussão revertam a decisão.

— Se o Ministério Público tiver uma ação firme na defesa da história, a população deverá ser chamada. Desta forma pesquisadores, políticos, estudantes e moradores poderão se posicionar, pois estamos nos organizando

Entidades organizam atividades com exibição de filmes e debates

Como parte desse levante, estão programadas atividades como exibição de filmes acerca da memória do Contestado e debates em diferentes cidades da região. Para o também professor e coordenador da Associação Paulo Freire de Educação Popular (APAFEC), de Fraiburgo, Jilson Souza, a decisão é uma forma de excluir a memória sobre a presença dos índios e dos negros na região.

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— É um processo de marginalização da cultura cabocla, uma espécie de embranquecimento impondo um pacto de silêncio, repetindo a marginalização que já aconteceu durante a Guerra e no período posterior — diz.

Não há alternativa turística razoável sem a memória efetiva do território e da população nele existentes”, diz pesquisador

O assunto também chegou à Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). O professor da Graduação e do Programa de Pós-Graduação em História, Paulo Pinheiro Machado, aponta equívocos na decisão. Machado, que também coordena o Grupo de Investigação sobre o Movimento do Contestado, considera que estão buscando um projeto turístico que imite cidades gaúchas como Gramado e Canela, tentando emplacar um modelo copiado, sem qualquer identidade regional. Para ele, não há alternativa turística razoável sem a memória efetiva do território e da população nele existentes.

— Santa Catarina tem milhares de vales europeus e de imigrantes. São nomes que se repetem. Preferem isso à identidade da Guerra do Contestado, um tema que já está em debates nacionais, já caiu no Enem. É realmente lamentável que a própria região não valorize seu passado e sua história — conclui.

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Assunto estava em discussão há quatro anos, diz presidente da nova região turística

A vereadora Dirlei Barbieri Rofner (PL), de Treze Tílias, é a presidente do IGR Vale dos Imigrantes. Dirlei diz que o assunto estava em discussão há pelo menos quatro anos entre secretários de turismo e prefeitos, além de pessoas ligadas ao setor. A Santur acompanhou os desdobramentos. Sobre a ausência de discussão com pesquisadores, ela conta que também as universidades fazem eventos sem convidar a IGR. Garante que a ideia não é tirar a importância da história, mas valorizar o turismo e dar aos municípios que realmente têm a ver com a guerra uma importância maior:

— Tínhamos 69 municípios e desses, 15 estão na configuração da IGR Caminhos do Contestado. No Vale dos Imigrantes temos 45 municípios, sendo que 24 no Mapa do Turismo Nacional. É preciso entender que a guerra terminou, e o que ficar se lamentando acerca da miséria não resolve — diz.

Para a vereadora, a discussão é positiva.

— Ainda estamos em tempos de contestação, e isso é bom. Ninguém quer tirar o valor da história, mas tem municípios que têm outros valores e características e isso precisa ser trabalhado como marketing turístico — sugere.

Mudança vai ajudar a desenvolver o potencial dos municípios ligados ao conflito, diz presidente do IGR Caminhos do Contestado

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Viviane Bueno é gestora de cultura de Três Barras e presidente da IGR Caminhos do Contestado. Para ela, o desmembramento vai ajudar a desenvolver a região, que é uma das mais empobrecidas de Santa Catarina.

— Não havia possibilidade de trabalhar o turismo com tantas diferenças. Tínhamos na mesma região municípios como Treze e Tílias e Piratuba, com muito mais infraestrutura, e outros sem capacidade para atender ao visitante — defende.

A IGR Caminhos do Contestado pretende ampliar o número de municípios e chegar a 20. Conforme Viviane, as prefeituras ainda estão analisando em qual IGR pretende ficar, levando em contas as características.

— A região foi cenário de uma guerra sangrenta, mas precisamos destacar de forma positiva a valentia e coragem. Agora poderemos fazer isso, valorizando o potencial dos municípios — diz.

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Santur acampanhou discussão e referendou a decisão

A interlocução do processo de atualização do Mapa do Turismo em Santa Catarina é de responsabilidade da Agência de Desenvolvimento do Turismo de Santa Catarina (Santur), por meio da Gerência de Políticas Públicas (Gepot). Os municípios que compõem o Mapa são validados pelos órgãos estaduais de turismo em conjunto com as instâncias de governança regional e categorizados a partir de critérios construídos pelo MTur.

O Mapa está vinculado ao Programa de Regionalização do Turismo e orienta a atuação do MTur no desenvolvimento das políticas públicas

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