* Colaboraram Antonio Neto e Dagmara Spautz

O nascimento de uma menina, que é filha de pais russos e veio ao mundo há duas semanas na Maternidade Carmela Dutra, em Florianópolis, trouxe à tona uma série de incertezas envolvendo o destino de outros bebês de pais russos nascidos na Capital. Apenas dois dias depois do parto, realizado no último dia 6, a Justiça determinou o acolhimento da menina com base numa representação ajuizada pelo Ministério Público.

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No documento, o MP acusa negligência dos pais, pois vieram ao Brasil quando a mãe estava no sétimo mês de gestação, sem que contassem com uma rede de apoio em Florianópolis. Também é questionada a motivação de se ter a criança no país, considerando despesas de aluguel e intérprete — é apontado que o pai diz ter vindo vender uma tecnologia, embora sem especificar do que se trata ou apresentar possíveis compradores.

Responsável pela representação, o promotor Marcelo Wegner ainda lança dúvidas sobre o paradeiro de outros seis bebês de mães russas nascidos na Capital desde 2014. São casos que o Conselho Tutelar levou ao conhecimento do MP porque não teve mais notícias das crianças e das famílias algum tempo após os nascimentos, manifestando que não houve acompanhamento dos bebês nas unidades de saúde em que eram atendidos (veja detalhes abaixo).

"É de se esclarecer, urgentemente, o motivo da vinda dessas famílias para Florianópolis, já que logo após o parto vão embora e não se sabe o destino desses recém-nascidos", escreveu Wegner.

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O promotor ainda cita a informação levada ao MP de que páginas na internet estimulam mulheres estrangeiras a terem filhos em Florianópolis, o que poderia caracterizar "estímulo ilegal à migração". Foi pedido à Justiça que sejam expedidos ofícios a todas as maternidades de Florianópolis para que informem imediatamente ao Conselho Tutelar sobre futuras entradas de mulheres russas grávidas. Também que fossem expedidas cópias dos autos à Polícia Federal e ao Ministério Público Federal para averiguação da prática de crimes.

Inicialmente, a Vara da Infância e Juventude acatou o pedido do MP e determinou o acolhimento da criança, pois entendeu que havia sido demonstrada a necessidade de intervenção judicial "no sentido de garantir à infante um desenvolvimento físico e mental adequado".

A Defensoria Pública do Estado, no entanto, ajuizou um habeas corpus em favor da criança, no sentido de devolvê-la aos cuidados dos pais. Em uma primeira decisão, o desembargador Selso de Oliveira manteve o acolhimento judicial determinado anteriormente. Em um novo recurso ajuizado pela Defensoria, desta vez um pedido de reconsideração, o mesmo desembargador acolheu a apelação e determinou a entrega da criança aos pais em decisão assinada na terça-feira.

Suspeita de tráfico de crianças não tem respaldo nas provas, manifesta desembargador

As suspeitas levantadas pelo Ministério Público em relação ao paradeiro dos outros seis bebês em situações anteriores foram alvo de ressalvas do desembargador Selso de Oliveira na decisão que determinou a devolução da menina aos pais nesta terça.

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O magistrado apontou que não há qualquer indício em relação ao casal que ampare desconfiança ou suposição de que estejam envolvidos com "tráfico de crianças". Ele ainda manifesta que sequer existe prova de que os conselheiros tutelares tenham realizado "alguma diligência efetiva" no sentido de localizar os pais das demais crianças e que também não consta que eventuais suspeitas do Conselho Tutelar tenham sido levadas ao conhecimento de alguma autoridade nos últimos anos.

"Apesar da inexistência de elementos concretos que possam amparar a 'suspeita de tráfico de crianças', com apenas dois dias de vida a paciente foi levada, de chofre, pelo Conselho Tutelar para Instituição de Acolhimento, muito embora seus genitores se encontrem legalmente no Brasil, em endereço fixo, onde residem com outra filha", escreveu o desembargador.

Ainda conforme anotou o desembargador, o acolhimento da criança "se deu com fundamento em 'suspeita de tráfico de crianças', fruto de uma conjectura que não encontra respaldo nos elementos de prova até o momento colacionados".

Russos buscam direito à moradia, informou tradutora

Uma tradutora que acompanha o casal russo em Florianópolis foi ouvida pelo Ministério Público na ação em que se pediu o acolhimento da criança. Ela disse ter formação para fazer o trabalho no Brasil e que cobra U$ 2 mil fixos pelos serviços de tradutora oficial.

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Segundo a profissional manifestou, alguns russos costumam vir para o Brasil ter filhos e ganhar o direito de morar no país. Ela ainda destacou que as famílias têm boas condições financeiras e que todas as crianças estão com os pais. A mulher confirmou que uma sócia nos trabalhos de tradução tem um blog com dicas de como viver e dar à luz no Brasil.

Órgãos não se manifestam

A reportagem procurou o promotor Marcelo Wegner nesta terça-feira, mas o Ministério Público informou que o órgão não se manifestaria nesta terça. O Conselho Tutelar não quis comentar o caso. O desembargador Selso de Oliveira também não quis se manifestar sobre a decisão.

Em nota, a Defensoria Pública do Estado comunicou apenas que "atuou de forma excepcional" no caso do acolhimento e que os pedidos foram realizados exclusivamente em benefício da criança. A Defensoria Pública também destacou que não atua nem atuou em qualquer outro caso que envolva o acolhimento de crianças nascidas no Brasil e de pais russos.

OS CASOS

O Conselho Tutelar levou ao conhecimento do Ministério Público uma sequência de casos envolvendo nascimentos de bebês filhos de mães russas em Florianópolis. O órgão de proteção manifestou contradições nas informações colhidas e pediu a averiguação dos fatos. As informações constam na representação para aplicação de medida de proteção de acolhimento institucional ajuizada pelo MP na Vara da Infância e Juventude da Capital.

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Caso 1 – Setembro de 2014

Bebê nasce no Hospital Universitário. Os pais, russos, estavam hospedados em um apart hotel de Jurerê. Em visita do Conselho Tutelar ao local, a gerente informou que a mãe da criança não quis fazer cadastro e que não retornou após a ida à maternidade. Disse não ter percebido movimentação do casal que pudesse indicar a espera do bebê.

Caso 2 – Maio de 2015

Mais um bebê filho de mãe russa nasce no Hospital Universitário. Segundo apurou o Conselho Tutelar, a mãe estaria há dois meses em Florianópolis e pretendia morar no Brasil porque a cunhada já vivia aqui. A mãe do bebê foi notificada a comparecer no Conselho Tutelar, mas quem se apresentou foi a cunhada. A mulher disse que todos estavam bem. O Conselho relata ter sido informado pela unidade de saúde que a cunhada sempre se mostrou solícita com os seus sobrinhos e com a mãe da criança.

Caso 3 – Maio de 2018

O Hospital Universitário faz mais um parto de bebê filho de mãe russa. O Conselho Tutelar visita a casa da mãe. Uma tradutora informa que a família estava há poucos meses no Brasil. Na ocasião, a mãe disse que o pai do bebê estaria na Rússia, tratando da mudança da família para o Brasil. Depois, o órgão protetor não teve mais sucesso em localizar a família.

Caso 4 – Julho de 2018

Nova notificação do Hospital Universitário sobre nascimento de bebê filho de casal russos. Em verificação do Conselho Tutelar no endereço informado, a família não foi localizada e, segundo apurado na unidade de saúde, eles teriam retornado à Rússia em outubro de 2018.

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Caso 5 – Agosto de 2018

Mais uma notificação do Hospital Universitário sobre nascimento de criança filha de russos na unidade. No mesmo mês, o Conselho Tutelar recebeu denúncia solicitando providências referente a crianças que ficariam sozinhas o dia inteiro sob a supervisão de um adolescente, inclusive o recém-nascido. Em contato com a unidade de saúde, não foi mais possível localizar a família.

Caso 6 – Janeiro de 2019

Um bebê filho de mãe russo nasce na Ilha Maternidade. O posto de saúde informou ao Conselho Tutelar que a mãe não queria manter contato com a criança. No prontuário, o endereço informado pela mãe constava o mesmo informado no caso 3. Uma conselheira foi até o local e não encontrou a família. Vizinhos disseram estranhar que algumas mulher grávidas russas chegaram ao local e não foram mais vistas após terem os bebês.

Caso 7 – Fevereiro de 2019

O Conselho Tutelar recebeu a informação do nascimento de um criança filha de mãe russa na Maternidade Carmela Dutra. Trata-se do bebê que teve o acolhimento institucional autorizado pela Justiça e, mais tarde, negado.