A retomada de consciência individual na busca por uma vida mais feliz, com mais tempo para lazer, trabalho e estudo e melhor uso do tempo livre é a proposta do Movimento Devagar, analisado em pesquisa da Escola de Comunicações e Artes da USP. Surgido na Europa, nos anos 90 do século passado, o movimento possui um conceito comportamental e não temporal. De acordo com a autora do estudo, a publicitária Marilia Barrichello Naigeborin, trabalho e consumo podem gerar um ciclo vicioso.
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– Quanto mais você consome, mais você precisa do trabalho. A relação fica extremamente mercantil – diz. – Hoje, por inúmeras razões o tempo livre acaba sendo o tempo do consumo, o que empobrece a vida. Não podemos nos esquecer do tempo para a cultura, a família, as coisas simples da vida que não custam dinheiro – acrescenta a publicitária.
A dissertação foi defendida em 2011, depois de uma viagem de oito meses por diversos países, que deu a Marília a oportunidade de conhecer diferentes culturas e organizações sociais. O orientador da pesquisa foi o diretor da Escola de Comunicações e Artes (ECA) da USP, professor Mauro Wilton de Souza.
O Movimento Devagar tem suas bases no Slow Food (“slow” significa “lento” e “food” significa “comida”), associação internacional sem fins lucrativos criada pelo jornalista Carlo Petrini, na Itália, em 1997. Sua criação é tida como uma reação crítica ao avanço do fast food, ao ritmo frenético dos dias atuais e do desaparecimento das tradições culinárias regionais. O Slow Food inspirou uma série de outros projetos. Em 2005, o jornalista canadense Honoré deu o nome de Movimento Devagar ao conjunto de esforços em demonstrar que tudo, ou quase tudo, quando feito devagar traz benefícios ao homem.
O tema contemporâneo se insere no plano das sociedades ávidas pelo consumo, consumo este que nem sempre reflete as necessidades de seus habitantes.
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– Às vezes, você almeja uma vida simples, mas o dinamismo e a pressão do mercado acabam te exigindo outro estilo de vida – diz Marilia.
Segundo ela, o mercado é tão dinâmico que tira das pessoas o tempo necessário para refletir sobre sua realidade. Dessa forma, elas seguem com suas rotinas, sem se darem conta de que não é aquilo que lhes satisfaz.
– Poucos conseguem se questionar: eu não mudo porque trabalho demais ou trabalho demais porque não mudo?
A filosofia do devagar tem em si uma tensão embutida.
– Como ser devagar em um contexto contemporâneo veloz? Obviamente não dá para abrir mão do mundo em que vivemos, por isso precisamos constantemente jogar com isso – diz. Esse estado transitório, entre o veloz e o devagar, incomoda e é isso que faz a pessoa permanecer consciente daquilo que lhe faz bem e o que não faz.
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Tempo
O tempo livre, hoje em dia, incomoda. Depois de um tempo, ele gera angústia. Quando a pessoa se depara com a falta da obrigatoriedade do que fazer, ela fica inquieta e não se sente satisfeita.
– Muitas vezes, estamos tão cansados para aproveitar o tempo livre que simplesmente o gastamos na frente da TV.
Para que o tempo livre seja bem utilizado é preciso se conhecer.
– As pessoas anseiam pelas férias, mas quando conseguem, não sabem o que fazer com ela. É preciso materializar o tempo livre, dar um sentido pra ele – explica Marilia.
Essa materialização tem de acontecer segundo o conceito “ócio criativo”, do sociólogo Domenico de Masi, onde lazer, trabalho e estudo se juntam. Essas três áreas favorecem o equilíbrio do ser para que ele possa seguir dialogando entre o veloz e o devagar.
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O escape do tempo livre acaba sendo o consumo, porque é uma zona segura. As marcas se aproximam do discurso da vida equilibrada e do mundo com desenvolvimento sustentável. Entretanto, elas apenas repassam esse discurso, mas não desejam verdadeiramente que ele se perpetue.
– São propagandas e inciativas bem executadas tecnicamente, mas que podem ser perigosas, pois não são isentas em seu debate. Eu acho que isso deve acontecer no meio acadêmico e nas esferas públicas, não na publicidade – coloca Marilia.
Aplicação
Segundo a publicitária, ainda é muito difícil dizer se o Movimento Devagar dará certo no Brasil, por ser um país em desenvolvimento. Ela aponta que o movimento é considerado, por muitos, elitista.
– Dentro da realidade brasileira ele ainda é mesmo: é muito difícil praticá-lo já que o mercado não incentiva o consumo de produtos orgânicos e que as pessoas trabalhem apenas meio período, por exemplo – afirma.
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Marilia acredita que a ligação entre o tema devagar e o planeta vai ajudar na impulsão do Movimento Devagar.
– Para o planeta sobreviver será necessário desacelerar – explica.
Com isso, o Devagar começa a inspirar as pessoas e esse é o segundo passo para que ele vigore no mundo.
E, por fim, partir para políticas públicas: carga horária de trabalho reduzida, licença de trabalho para os pais, produtos orgânicos com preços acessíveis, etc.
– A consequência disso será a reconciliação entre o homem e o tempo. Então estaremos finalmente reconectados – completa.
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