É tudo cinema
Por Carlos Gerbase*
No longa-metragem Edifício Master (2002), construído com várias conversas (e não entrevistas, o que faz toda a diferença do mundo) com os moradores de um edifício em Copacabana, Rio de Janeiro, não há uma personagem principal.
Continua depois da publicidade
O cotidiano daquela fantástica comunidade urbana de classe média é contado por múltiplas vozes, que constroem uma subjetividade coletiva, obviamente manipulada pelo cineasta, tanto na escolha de quem fala, como na edição, que ordena e dá sentido aos discursos individuais, com o objetivo de criar uma grande síntese, que sai da boca do próprio edifício. Todo bom documentário é uma ficção com um código de ética mais rígido.
No entanto, desde a primeira vez que assisti a esta obra-prima de Eduardo Coutinho, uma personagem me comoveu mais que todas as outras: Daniela. Ela se define como uma sociopata. Mora sozinha com alguns gatos, evita andar de elevador com seus vizinhos, escreve poesias em inglês e pinta pequenos quadros, que diz não terem qualquer valor estético, mas que “resolvem muita coisa” em sua relação conturbada com a sociedade e consigo mesma.
Continua depois da publicidade
Durante toda a conversa, Daniela não olha para o seu interlocutor. Ela explica que não tem coragem e se desculpa com Coutinho: “Eu tenho esse problema. Eu só forço a barra quando vou a uma entrevista de trabalho. Elas [as entrevistadoras] acham que você está mentindo se não olha nos olhos: ‘Então você teme, você deve’. E como eu não tô temendo nem devendo… Aqui eu não tô devendo, mas eu tô temendo.” Coutinho aparta: “Você está temendo?” E Daniela prossegue: “É claro! Você acha que o fator que impulsiona a pessoa a não ter o tête-à-tête é o quê?” Nesse instante Daniela olha pela primeira e única vez para Coutinho. E logo continua: “É o medo.”
A habilidade para fazer suas personagens vencerem seus medos e abrirem o coração, explicitando seus sentimentos mais íntimos, numa cumplicidade que vai nascendo aos poucos, naturalmente, mas que de repente pode se manifestar de forma dramática, sempre foi a marca registrada de Coutinho.
Agindo assim, ele obtém pequenas joias orais, como essa definição de Daniela para a sua relação com o bairro: “A aglomeração típica do vaivém em Copacabana faz com que eu chegue em casa muito estressada. Eu não sei se são pessoas demais ou calçadas muito estreitas. Ou se é uma fusão desagradável dos dois elementos”.
Quando o filme foi lançado, surgiram críticas à inclusão de Daniela no documentário. Como vai se sentir a Daniela se ela for a uma sessão do filme e ouvir toda a plateia rindo dela? Como um cineasta que declara que a estética de um documentário é a sua ética pode expor assim um ser humano ao ridículo? Não sei se Coutinho respondeu diretamente às críticas, nem se a própria Daniela se manifestou, mas, como espectador, posso dizer que o filme não seria o mesmo sem a Daniela, pois estaria perdida uma de suas características fundamentais: a organicidade.
Continua depois da publicidade
Os quase 500 moradores de Edifício Master formam um organismo social que, no testemunho de Coutinho, contém certa dose de desequilíbrio mental _ ou “sociopatia”, no conceito de Daniela _ e um verdadeiro documentarista deve ser honesto quando dá seu testemunho sobre o que suas câmeras e microfones captam. Tirar Daniela seria antiético do ponto de vista cinematográfico.
Ignorar um organismo (social ou biológico) como um todo integrado e coordenado e apresentar apenas aquilo que interessa ao próprio cineasta (ou ao público) é procedimento comum na ficção, que sempre dá um jeito de ajustar o mundo real dentro do roteiro. Contudo, num documentário, que faz a operação inversa _ ajusta um roteiro dentro do mundo real _ fechar os olhos para a diversidade e para o inesperado é um grosseiro erro metodológico e epistemológico, prejudicando a interpretação do espectador. Infelizmente esse é caminho de muitos cineastas. Eduardo Coutinho não comete esse tipo de erro.
Em Santo Forte não vemos apenas a convivência pacífica de várias religiões nos morros do Rio _ o tal sincretismo, estereótipo amplamente difundido, que promoveria trocas culturais constantes entre as crenças e permitiria uma coexistência sem maiores traumas _, mas também uma luta pelo “poder espiritual” sobre a comunidade, envolvendo facções católicas, evangélicas e umbandistas. Não sei o que Coutinho pensava antes de fazer o filme, mas sei o que ele testemunhou durante aqueles dias: almas e corpos estão em disputa.
A inesperada morte de Coutinho deixa seus admiradores tristes e chocados. Contudo, seu legado e sua inspiração, tão evidentes no trabalho de outros cineastas brasileiros _ como João Moreira Salles, João Jardim, Rudi Lagemann e Walter Carvalho _ continuarão alimentando a vertente organicista do filme documental.
Continua depois da publicidade
Notícias de uma Guerra Particular (Walter Salles, 1999) talvez seja o filme em que esse legado é mais evidente. A vida da favela Santa Marta é apresentada sob três pontos de vista, bem distintos e complementares _ de um policial, de um traficante e de uma moradora. Ao contrário de Tropa de Elite (José Padilha, 2007), em que temos a visão policial, e de Cidade de Deus (Fernando Meirelles e Katia Lund, 2002), de moradores e traficantes _ e que são dois bons filmes ficcionais, sem dúvida _, Notícias… é um filme organicista, que não tenta reduzir a questão da violência a uma única causa: as drogas.
À medida que as conversas se entrelaçam, percebemos que aquele morro tem uma rede de relações sociais complexa, que exige uma análise muito mais sofisticada do que as notícias dos telejornais costumam apresentar. Em Santa Marta: Duas Semanas no Morro (1987), Coutinho filmou a mesma favela durante duas semanas e conversou com os moradores. As drogas já estavam lá, mas numa proporção artesanal, e não industrial como a dos nossos dias. É muito interessante assistir aos dois filmes e notar a diferença. Contudo, os problemas da população favelada não mudaram muito em 12 anos. As drogas não criaram nem a violência, nem a miséria.
Ao tratar cada uma das personagens que filma como uma pequena célula que faz parte de uma organização maior e mais complexa, Coutinho revolucionou o documentário brasileiro e contribuiu para a sua história planetária. Em seus filmes percebemos que a fala de um ser humano, ainda razoavelmente simples e homogênea (mas nem sempre…), só ganha sentido na trama social, muito mais heterogênea e complexa. E, mais importante ainda, as falas são mutuamente dependentes, num operação que revela a mais poderosa e característica arma do cinema documental: a montagem.
* É cineasta, escritor e professor do Programa de Pós-Graduação em Comunicação Social da PUC-RS