Como quem desperta de um nocaute, Santa Maria começa a retomar a rotina interrompida pela tragédia de 27 de janeiro. Mas há um pedaço na cidade que se tornou maldito, pelo menos por enquanto: a Rua dos Andradas, na quadra onde a boate Kiss ardeu em chamas e exalou a fumaça venenosa que matou 238 jovens.

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As emanações tóxicas expelidas do prédio 1.925 parecem ter contaminado a Rua dos Andradas, no trecho entre a Rua André Marques e a charmosa Avenida Rio Branco. Moradores do lugar estão arrumando as malas ou já se mudaram. Adriely Cirolini, 24 anos, procura novo endereço.

– É torturante ficar aqui. Vai ficar sempre na memória – diz a jovem.

Funcionária de uma loja, Adriely reside no edifício junto à Kiss com mais quatro companheiras, que repartem os quartos, a conta da luz, o aluguel e os sonhos. Uma delas, Jéssica Rodrigues, estava na casa noturna na noite do incêndio. Atendida no hospital, sobreviveu. Mas outra amiga de Adriely, Viviane Soares Tolio, morreu. Elas não moravam juntas.

Vinda de São Sepé, migrante como muitos jovens de Santa Maria, Adriely afastou-se por uma semana do apartamento onde mora. Ao voltar, deparou com a Rua dos Andradas convertida em altar: centenas de vasos de flores, cartazes e velas acesas reverenciaram os mortos, diante da Kiss, na semana que passou. A transformação reforçou o pressentimento de que o luto irá demorar.

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No mesmo prédio de Adriely, uma das janelas estampa uma placa de “vende-se”. Está lá desde o final do ano passado, mas perdeu o apelo comercial. O corretor Glênio Machado prevê que os imóveis da Andradas, perto da Kiss, serão desvalorizados no mínimo em 20%. Nos próximos seis meses, dificilmente aparecerão interessados em comprar apartamentos.

– Quem pode se interessar é o investidor, que compra quando o preço está em baixa – observa Machado.

Comerciantes também se preocupam. Ao lado da boate, funciona a Center Color Formaturas, que organiza festas para os que se diplomam. O gerente regional da empresa, Miro Cezar, diz que aguarda uma definição da matriz, situada em Passo Fundo. Uma das possibilidades é trocar de bairro.

– Ficou um ambiente ruim – conta Cezar, que conhecia algumas das vítimas.

Os escombros da Kiss viraram local de peregrinação. Ildane Glória de Oliveira e a filha, Vivian, 16 anos, foram de Dom Pedrito a Santa Maria para rezar pelo conterrâneo, Juliano Farias. Vivian depositou crisântemos para o amigo morto, rezou e saiu soluçando, amparada na mãe.

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Moradores de Santa Maria acorrem ao futuro memorial em que deve se transformar a Kiss, entre pesarosos e indignados. Basta se misturar à pequena multidão flutuante para ouvir desde lamentações a protestos.

– Estão chamando isso de caixa da morte, e é verdade. Só tem uma portinha de saída – abisma-se uma senhora.

– Era o inferno, o capeta esteve aqui – comenta outra, persignando-se.

– Tudo jovem, hein, tudo jovem… Com o futuro pela frente – lastima um senhor.

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