Nessa aldeia flutuante, só existe um meio de locomoção. As crianças vão à escola de barco. Os evangélicos pentecostais vão à igreja de barco. Os táxis são barcos. E até mesmo o campo de futebol quase sempre é um barco.

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Existem três campos em terra, porém, no momento, eles estão submersos pela inundação anual do Rio Negro, que se encontra com o Rio Solimões na região para formar o Rio Amazonas. Se as traves de madeira tivessem redes, nessa época do ano elas só serviriam para pegar peixes.

Assim, os jovens jogadores e os adultos improvisam. Eles jogam futebol em um centro comunitário que tem telhado, mas não tem paredes. E jogam no embarcadouro de um restaurante. E também em uma balsa atracada, com alguns usando coletes salva-vidas para amortecer as quedas no deque de metal e para não afundarem enquanto recuperam a bola quando ela cai no rio.

– Temos de continuar jogando, nos divertindo, não importa onde -, declarou Jailson da Silva de Souza, de 23 anos, lenhador dessa aldeia com cerca de 100 famílias, situada do outro lado do enorme Rio Negro que corta Manaus, uma das 12 cidades-sede dos jogos da Copa do Mundo.

– Caso contrário, ficaremos barrigudos, e as mulheres não gostam disso.

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As casas de madeira em Catalão flutuam nos troncos de árvores cortadas. As galinhas perambulam pela madeira e por tábuas quando saem dos seus viveiros flutuantes. Os carros são guardados do outro lado do Rio Negro em Manaus. O cemitério também fica em Manaus. E o futebol precisa criar as suas próprias acomodações. Segundo os moradores, há anos, eles jogaram em um petroleiro abandonado no Rio Negro até que ele foi vendido e removido.

– A Índia o comprou -, revelou Alexandro Ferreira Viana, de 35 anos, o organizador dos eventos de futebol em Catalão.

– Ouvi dizer que ele naufragou.

A paixão pelo futebol fica evidente por toda a aldeia. Camisetas do Brasil são penduradas nos varais. Bandeiras verde-amarelas se agitam nas varandas. Em uma sala de aula, todos os membros da seleção brasileira são representados por uma estrela da bandeira nacional.

Geane de Sousa, de 27 anos, proprietária de uma pequena loja de conveniência perto dos campos submersos, tem o nome do seu clube favorito, o Flamengo do Rio de Janeiro, no motor de popa. Ela iça a bandeira do time sempre que sai de barco.

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– O meu pai amava o Flamengo, assim, eu também amo -, disse.

Tirando o futebol e a escola, não há muito para as crianças fazerem aqui na temporada das chuvas a não ser empinar pequenas pipas, algumas feitas com plástico de sacolas de supermercados, e a linha é enrolada em latas de refrigerantes.

– Não gostamos de dominós nem de cartas -, declarou Ferreira Viana, o organizador do futebol.

– Só gostamos de futebol.

A bacia hidrográfica do Rio Amazonas, a maior do mundo, percorre uma extensão quase do tamanho dos Estados Unidos continentais. E porque as casas, a escola, e mesmo os campos temporários de futebol em Catalão são feitos para flutuarem, a inundação anual tem sido recebida com o mínimo de impacto.

– Quanto mais alta a cheia, mais perto de Deus estamos -, declarou Laércio da Silva, carpinteiro de 43 anos.

Contudo, em Catalão, os moradores enfrentam os efeitos de uma tendência recente do aumento das enchentes e das secas na bacia hidrográfica do Rio Amazonas. Um círculo branco pintado ao redor de uma árvore registra o nível que a água atingiu durante a inundação de 2012.

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A marca de elevação da água no Rio Negro este ano foi a quinta mais alta em mais de um século de medições feitas no Porto de Manaus – apenas um pouco menos de um metro abaixo do recorde de 2012 de 30 metros, segundo Jochen Schöngart, especialista dos modelos de previsão de inundações do Instituto Nacional de Pesquisa da Amazônia.

Antes da Copa do Mundo, chuvas pesadas provocaram inundações no Aeroporto de Manaus. Foi decretado situação de emergência local como medida preventiva, embora nenhum dos quatro jogos no estádio Arena Amazônia tenha sido afetado.

Houve três anos consecutivos de inundações graves na região de Manaus após o nível de elevação mais baixo registrado do Rio Negro, em 2010, contou Schöngart.

Os cientistas estudam o impacto do desflorestamento na bacia do Rio Amazonas, e o esfriamento e aquecimento do Oceano Pacífico, mas os padrões extremos observados durante os últimos 25 ou 30 anos deixam uma importante pergunta em aberto, segundo Schöngart:

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– Essas tendências são mudanças climáticas provocadas pelas atividades humanas, ou podemos explicá-las através da variabilidade natural do clima?

Em Catalão, os aldeões disseram que barcos às vezes derrubavam as linhas de transmissão de energia durante os períodos de cheias excepcionalmente altas. E embora os campos de futebol geralmente fiquem disponíveis por cerca da metade do ano, a terra firme recentemente tem sido seca o suficiente para jogos somente durante quatro ou cinco meses.

– Não temos um local para as crianças brincarem -, disse Sousa, a proprietária da loja.

– Elas ficam presas dentro de casa, entediadas.

As mais aventureiras, no entanto, encontrarão um jogo em algum lugar.

Durante um recente feriado escolar, sete garotos jogaram em um pequeno piso de madeira no centro comunitário, que tem um telhado, mas somente trilhos para manter a bola dentro do jogo.

As carteiras escolares foram empilhadas em um canto em cima de uma mesa de sinuca. Uma proteção de madeira foi colocada estrategicamente entre os vãos dos trilhos. Um pedaço de madeira longo e fino bloqueou outra abertura.

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Descalços, os jogadores correriam com destreza ao redor das estacas de sustentação do telhado, driblando de forma habilidosa dentro do espaço apertado e dando chutes fortes contra os trilhos usados como traves. Quando a bola caia dentro da água, o que era constante, os jogadores a puxavam com uma vara ou, caso ela fosse parar muito longe, era recuperada com uma canoa.

No fim, porém, os jogadores alegremente pulavam dentro do rio indo atrás da bola. Conforme a água escorria, o chão do centro ficava tão escorregadio quanto uma pista de patinação. Os jogadores morriam de rir enquanto tentavam, quase sempre em vão, ficar de pé.

– Eu gosto daqui, mas em terra firme é melhor porque quando caímos não nos machucamos -, disse Aldenei Texeira, de 14 anos.

Perto do anoitecer, os adultos chegaram de Manaus voltando do trabalho, e a pelada mudou para um pequeno embarcadouro do restaurante Paracambi.

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– É como dois esportes em um – natação e futebol -, disse Raimunda Ferreira Viana, de 51 anos, a presidente da comunidade e mãe do principal organizador dos jogos.

Há quatro ou cinco anos, o proprietário de uma construtora local começou a oferecer o uso de campos provisórios: balsas de transporte de veículos e equipamentos pesados pelo rio.

Pequenas traves de madeira são colocadas no deque, e alguns jogadores usam chuteiras de futebol. Os jogos geralmente são realizados no final da tarde porque a superfície de ferro pode ficar muito quente com o calor equatorial.

Em um sábado recente, três equipes de cinco jogadores se reuniram em uma balsa velha enferrujada com uns 60 metros de comprimento por 15 de largura. Um galão de combustível abandonado foi utilizado para retirar do deque a água da chuva.

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Daniel Camilo Viana, de 22 anos, lenhador, usou um colete salva-vidas. Caso ele tivesse de pular dentro do Rio Negro atrás da bola, ele disse:

– Não quero afundar muito.

Gilcivane da Silva, de 24 anos, dona de casa que morou em Catalão por apenas um mês, jogou na balsa pela primeira vez e venceu três jogos como zagueira.

– Muito legal -, afirmou, mas nada de buscar a bola na água:

– Um bicho pode me pegar.

Não se preocupe, disse Ferreira Viana, a presidente da comunidade.

– Os jacarés não mordem -, ela disse:

– Eles são nossos amigos. Vivemos na mesma água.