Há 30 anos, o então pescador Hermógenes Prazeres de Carvalho, hoje com 69 anos, comprou uma casa na comunidade São Miguel, em Biguaçu, para dar um novo sentido à vida. Usou todo o dinheiro que tinha e virou maricultor. Até hoje, ele, sua mulher, Maria Irene da Silva Carvalho, 66, e seus dois filhos, de 47 e 29 anos, dependem das ostras, colhidas na comunidade, para sobreviverem. Da própria casa, na beira da praia, saem suas embarcações. Sem isso, a família simplesmente não teria mais renda.

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— É isso o que a gente sabe fazer. Se eu não puder mais ser maricultor ou pescador, e não puder mais viver aqui, eu simplesmente não sei — resumiu.

Junto dele, outras 50 famílias de São Miguel dependem do pescado como sustento. Mas parece que a rodovia BR-101, que fica do ladinho da faixa onde as casas e a praia estão situadas, virou um problema para todos eles.

Na região que fica logo atrás da Polícia Rodoviária Federal (PRF), em Biguaçu, moram cerca de 60 famílias, avalia a prefeitura. No início do ano, parte dos moradores começou a receber a visita de oficiais de justiça com uma cartinha ingrata: uma intimação.

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O mandado que a moradora e pescadora Vera Lúcia Santana, 57, recebeu, por exemplo, indicava para ela verificar o número do processo, que constava no documento, no site da Justiça Federal.

Lá, a surpresa: descobriu que a Autopista Litoral Sul, concessionária da BR-101 entre Palhoça e Garuva, ingressou com uma ação de reintegração de posse com pedido de demolição da casa de Vera. A concessionária defende-se, segundo o que consta no processo, dizendo que a “área em questão se insere em faixa de domínio, estendendo-se também sobre a área non aeidificandi (não edificante), sendo sua atribuição, na condição de concessionária de serviço público, inclusive por expressa disposição contratual, zelar pelos bens que integram o patrimônio concedido e cumprir as demais obrigações decorrentes do contrato de concessão”.

— Primeira coisa que fiz foi procurar um advogado, porque eu recebi duas cartas (dois mandados). E foi ali que descobrimos que, apesar de estar no meu nome, os imóveis que eles estavam pedindo a reintegração nem sequer eram meus, eram de vizinhos. Simplesmente apareceram aqui fazendo fotos dos imóveis e nem confirmaram os nomes — desabafou a pescadora.

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Vera e o marido, o também pescador Edézio Santana, 59, moram desde 2006 na praia de São Miguel. Podem ser considerados moradores mais “novos” do local. O que eles não conseguem entender é que, somente agora, depois de 11 anos, recebem uma intimação para saírem e demolirem sua própria casa.

E o mais assustador: sem receber nada em troca, como consta no processo judicial. A concessionária explicou, em nota, “que as ocupações são irregulares, o que não prevê nenhum tipo de indenização. Os casos estão sendo tratados e avaliados na justiça”.

Uma vida no balneário

Se o casal Vera e Edézio está há pouco tempo em São Miguel, não é o caso da maioria dos moradores do local. O ex-pescador Valdir Nunes, de 57 anos, nasceu na prainha. Ele lembra que quando estava para fazer dez anos de idade, o asfalto BR-101 estava sendo finalizado.

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— Meu pai morava aqui desde 1940, desde antes da rodovia, quando era ainda uma estrada de chão. Isso aqui é tudo o que a gente tem. Meus filhos também moram aqui, têm negócio aqui. Eu simplesmente não consegui acreditar quando o pessoal falou que estava recebendo intimações para saírem — lamentou Valdir.

Com a notícia, o aposentado chegou a passar mal e precisou ir até um médico para tratar um distúrbio de ansiedade e depressão. Até hoje, a tristeza o consome ao pensar na hipótese de ter que deixar o único lugar em que viveu.

O sentimento é compartilhado pelo pensionista e pescador Roberto Lopes, 50, também morador de São Miguel desde que nasceu, e como lembra, antes da duplicação da BR-101.

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— Não é assim, simplesmente exigir que as pessoas saiam de suas casas. Vamos para onde? Para debaixo da ponte? Eu não quero sair daqui. Não quero nem uma indenização, se for decidido por isso. Este é o meu lugar — disse.

Em defesa da comunidade

Os moradores procuraram a prefeitura, já que pagam impostos pela morada. Em uma reunião semana passada na comunidade, da qual participaram o defensor público federal João Vicente Pandolfo Panitz, o prefeito Ramon Wollinger, o vice-prefeito Vilson Norberto Alves e o vereador Elson João da Silva, a prefeitura se comprometeu em ajudar a defender o espaço.

O órgão já começou a realizar um estudo antropológico, com membros da Fundação Municipal do Meio Ambiente e da Secretaria de Planejamento, para comprovar que os moradores já estão ali há tempo suficiente e que dependem do local para seu sustento. Colaboram ainda na reunião de documentos para que os moradores consigam confirmar que possuem a posse dos imóveis.

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João Panitz, que representa a Defensoria Pública da União (DPU), explicou aos moradores que cada um que receber o mandado da Justiça deve fazer sua defesa pessoal, procurar um advogado privado ou procurar o apoio da DPU, que presta o serviço gratuitamente. Eles devem apresentar documentos que comprovem a posse do imóvel e que o local é indispensável para suas rendas.

Ao mesmo tempo, o defensor vai entrar com um pedido de ação civil pública ainda na próxima semana, para que a reintegração de posse seja impedida e que os moradores não precisem sequer deixar suas casas, mesmo que a área em questão seja de fato da União e uma área não edificante.

— Essa questão de legalidade é discutível, porque os moradores estão ali antes da rodovia. Há leis nacionais e até internacionais de trabalho que protegem essas comunidades tradicionais — observou o defensor.

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João vai sugerir, na ação, uma audiência de conciliação, para que os próprios moradores possam levar suas sugestões e soluções viáveis. Uma das questões que a própria concessionária releva é a falta de segurança na beira da rodovia. O maricultor Hermógenes e os vizinhos acreditam que a instalação de um radar na região, por exemplo, já poderia melhorar essa questão.

— Apesar de que nunca ninguém da comunidade se acidentou ou foi atropelado ali. Temos um túnel subterrâneo, para pedestre, para atravessar a rodovia, então nunca teve nenhum problema em relação a isso — avisa o maricultor.

O que diz a empresa

Em nota enviada à Hora, a concessionária confirmou que o “objetivo das ações judiciais movidas pela concessionária é restabelecer as áreas federais ocupadas de forma irregular, que comprometem a segurança viária no km 190 da BR-101. A reintegração de posse, ao ser concedida pela Justiça Federal, tem como consequência a demolição das ocupações irregulares existentes em faixa de domínio”.

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“A concessionária segue as regras do DNIT de confirmação da faixa de extensão que decorre do Decreto de Utilidade Pública. De acordo com o contrato de concessão, a preservação da faixa de domínio da União e a adoção de medidas operacionais para segurança dos usuários ao longo da BR-101, entre Garuva e Palhoça, são obrigações da Autopista Litoral Sul. Além disso, a concessionária zela pela segurança dos próprios moradores que convivem nestas áreas em situação de risco”.

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