Morto em 2011, aos 70 anos, o diretor chileno Raúl Ruiz deixou uma obra-prima como testamento. Mistérios de Lisboa encantou plateias onde foi exibido, mas seu formato inusual foi decisivo para que este monumento do cinema, com quatro horas e meia de duração, só chegasse agora a um cinema porto-alegrense.
Continua depois da publicidade
O longa que estreia nesta terça-feira na Sala P.F. Gastal da Usina do Gasômetro foi rodado em vídeo digital, para emissoras de tevê de Portugal e da França – este último o país que o acolheu após o golpe militar de Pinochet e que lhe deu guarida desde os anos 1970 para consolidar uma carreira prolífica (foram mais de cem filmes) e experimental numa medida que só encontra parâmetro de comparação com os maiores mestres de seu tempo (Godard entre eles).
Concebido para ser apresentado em seis capítulos de 45 minutos ou em dois de pouco mais de duas horas cada, Mistérios de Lisboa será exibido em Porto Alegre em sessões na íntegra (às 14h30min e às 19h), no Super Blu-ray da sala da Usina do Gasômetro – que, assim como seu equivalente da Cinemateca Paulo Amorim, garante a boa qualidade de projeção.
Quem encarar a maratona conhecerá uma trama folhetinesca com intrigas, desencontros e reviravoltas de arrancar o fôlego. Trata-se de uma adaptação da obra literária de Camilo Castelo Branco (1825 – 1890), que percorre redes de relações entre a Lisboa e a Paris do século 19, cujas conexões se estendem pelo restante da Europa e, também, pelo Brasil.
O turbilhão segue o destino de um menino órfão (João Arrais), protegido de um padre contrito (Adriano Luz), e sua jornada de crescimento e descoberta da própria identidade. A revelação de que sua mãe, uma condessa (Maria João Bastos), o abandonou porque ele nascera de um relacionamento proibido é só uma das primeiras de uma história repleta de ligações inesperadas, paixões violentas e amores desgraçados – cabe destacar, no grande elenco, a presença das belas atrizes francesas Clotilde Hesme e Léa Seydoux e do astro e galã português Ricardo Pereira.
Continua depois da publicidade
Com grande habilidade, Ruiz dá solenidade a cada surpresa da trama, levando o melodrama a um ponto limite que é típico dos romances de folhetim mais radicais. Não se engane: parece um filme de época absolutamente clássico, com planos contínuos e enquadramentos tradicionais, mas é, na verdade, mais uma ousadia de um mestre que fez tanto dos gêneros cinematográficos quanto da sociedade das aparências o terreno mais fértil para suas subversões.
Os personagens
José Afonso Pimentel interpreta Pedro da Silva, o menino órfão que é um dos personagens centrais do folhetim, na idade adulta. Mas é João Arrais que o encarna na maior parte do tempo. Quando o garoto descobre a identidade de sua mãe, a Condessa Ângela de Lima (Maria João Bastos), vários homens e mulheres da aristocracia portuguesa (e francesa) adentram na trama, a começar pelo Conde de Santa Bárbara (Albano Jerónimo). É o fidalgo abastado Alberto de Magalhães (Ricardo Pereira), no entanto, quem mais chama a atenção. As revelações que ele faz ao Padre Dinis (Alberto Luz), protetor do menino Pedro da Silva, vão trazer à tona segredos do passado e levar a trama a outros destinos, incluindo Veneza e, mais tarde, o Brasil. Vinda da França, a bela e vingativa Elisa de Montfort (Clotilde Hesme) também mexe com as memórias de Dinis – o passado do padre com a mãe dela, Blanche (Léa Seydoux), igualmente teve consequências no presente, como você descobre com o desenrolar da história.
O diretor
A carreira de Raúl Ruiz despontou em 1968, com Três Tigres Tristes, que lhe garantiu lugar entre os principais realizadores de sua geração na América Latina. A perseguição política, no entanto, fez com que o chileno partisse para o exílio na França em 1973, ano do golpe que alçou Pinochet ao poder. Em Paris (assinando ora como “Raoul”), Ruiz se afirmou como “o cineasta mais prolífico da nossa época, aquele cuja filmografia é quase impossível de definir tal é a sua diversidade, esplendor e multiplicidade de formas de produção”, conforme o crítico Serge Toubiana numa edição inteiramente dedicada a ele (privilégio de poucos autores) pela revista Cahiers du Cinéma. A mesma publicação o chamou de “mais importante cineasta ?francês? desde Rohmer, Bresson e Godard”. Entre seus melhores filmes, estão A Hipótese do Quadro Roubado (1978), As Três Coroas do Marinheiro (1983), A Vila dos Piratas (1983) e a ousada adaptação de Proust O Tempo Redescoberto (1998).
Mistérios de Lisboa
De Raúl Ruiz. Com Ricardo Pereira, Adriano Luz, Maria João Bastos, João Arrais, Vânia Rodrigues, Clotilde Hesme e Léa Seydoux.
Continua depois da publicidade
Drama, Portugal/França, 2010. Duração: 272 minutos. Classificação: 12 anos.
Estreia nesta terça-feira na Sala P.F. Gastal da Usina do Gasômetro, com sessões diárias às 14h30min e às 19h.
Cotação: 5 estrelas.