Redações são redutos de formações variadas. Abrigam diplomados em Direito, Filosofia, História, Geografia e até Medicina. Jornalistas se metem em todas as áreas e às vezes se apaixonam por algumas delas. Francisco Amorim, repórter de Zero Hora, despediu-se há uma semana da Redação para fazer doutorado em Sociologia. O jornalismo lida quase sempre com o particular, com a alma singular de quem aciona algum tipo de informação. Chico vai se dedicar, na Sociologia, à compreensão das almas coletivas.

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O repórter submetia-se às urgências de quem aborda um momento recente. O sociólogo se juntará aos que investigam as relações humanas sem pressa. Daqui a alguns anos, quero reencontrá-lo para poder perguntar, com bom distanciamento no tempo: que almas coletivas eram aquelas que saíram às ruas naquele inverno de 2013?

Almas coletivas sempre confundem. Na pressa e na preguiça, qualquer um – inclusive o jornalismo – pode caricaturar um movimento como este que há duas semanas agita o país. É fácil desqualificar ou glamorizar uma mobilização. No maio de 68 em Paris, os estudantes chegaram a ser desqualificados como incapazes de promover inquietações políticas.

Os jovens poderiam ser transviados, mas não seriam agentes políticos de coisa alguma. Mas a juventude como expressão coletiva nasceu em 68. O sociólogo Fernando Henrique Cardoso estava em Paris e lecionava na Universidade de Nanterre, onde tudo começou. E começou, conta sempre FH, porque os guris queriam entrar nos aposentos das gurias na universidade. O tesão, num ambiente conservador, teria deflagrado tudo.

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Depois, as almas coletivas dos trabalhadores em greve se misturaram às almas dos universitários e houve uma confusão de almas. O historiador Luiz Felipe de Alencastro já disse que, no início, entendeu tudo errado. E o que seria o certo?

O certo é que Paris disseminou pelo mundo uma onda de apelos, em nome de todas as liberdades, que pareciam não estar em pauta alguma. Assim como agora os que estão de fora não enxergam direito o que, afinal, seria o foco central e objetivo do que leva tanta gente às ruas. Pois é na aparente dispersão de demandas que está a lógica do movimento, puxado pela luta contra a passagem cara e o transporte ruim. A teia de apelos explicitada a partir das passagens é o que os cientistas chamam de cadeia de equivalências.

Assim como tentaram ver, nas almas coletivas de 68, o que poderia desqualificá-las ou glamorizá-las pela simplificação, também agora a tentação é grande. Na pressa pela definição, pode-se listar “categorias” de participantes e enquadrá-los, para o bem ou para o mal. Ou pode-se simplesmente dizer que, com tanta gente com interesses conflitantes, é impossível que isso dê certo. A revolução federalista gaúcha, do final do século 19, teve, do mesmo lado, o idealismo liberal de Silveira Martins e a selvageria do degolador Adão Latorre.

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Chico Amorim vai ter trabalho, porque a transgressão política juvenil hibernou por duas décadas no Brasil. E hoje a Sociologia entende tudo de redes sociais, mas não me explica por que a taxa de homicídios de Porto Alegre é quatro vezes maior do que a de Montevidéu. O mundo virtual pode salvar as ciências humanas, que nas últimas décadas viraram samambaias dos anos 60, relegadas a um canto da sala pelo culto da universidade às artes das tecnologias.

Como pediria Sandra Pesavento (saudade das suas provocações), usem com moderação os antigos pressupostos de natureza teórica para tentar entender as agitações. Por enquanto, o que sabemos é que, para o bem de todos os que não têm medo de pensar, como diziam lá nos anos 60, as ideias voltaram a ser perigosas. Que as ideias derrotem os degoladores.