Melhor filme do Festival de Sevilha do ano passado, A academia das musas é um envolvente exercício cinematográfico entre a ficção, o documentário e o ensaio. O premiado cineasta espanhol José Luis Guerín falou com Zero Hora sobre o longa em cartaz na Capital, em que um professor de filologia na Universidade de Barcelona propõe a suas alunas criar um projeto inspirado em referências clássicas a fim de regenerar o mundo por meio da poesia.
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Como surgiu o projeto de A academia das musas?
Eu tinha o desejo há tempos de abordar a palavra no cinema, de recuperar algo do grande legado do diálogo na tradição de Lubitsch (Ernst, cineasta alemão), e o professor Rafaelle Pinto me convidou para fazer um experimento cinematográfico na sua aula de filologia, com sua comunidade de poetas e poetisas. Desse modo comecei a filmar, sem ter consciência verdadeiramente de fazer um filme, entregue unicamente a essa experiência com a palavra e o gosto pelos personagens que se iam descobrindo por meio dela. Analisando o material rodado, comecei a desejar o filme. Desse modo, o filme foi se desenvolvendo e se encontrando a si mesmo a partir do próprio material registrado. Ele me instigou a desenvolver as ideias e os personagens que se insinuam.
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Como você escolheu o elenco, com o maestro e suas musas?
Com o mestre eu mantinha uma relação de amizade em torno da literatura. Ele se encarregou da tradução e edição de Vida nova, de Dante. Uma edição cheia de notas reveladoras, que motivou meu filme En la ciudad de Sylvia (2007). Rafaelle é um ator nato, com toda essa eloquência napolitana, mas não fui eu quem o escolheu, e sim o contrário. Ele sentia o desejo de cinema, da ficção. Creio, portanto, que não sou eu nesse caso quem escolhe os atores, mas seriam eles que me escolhem. Isso vale também para as alunas. Na própria dinâmica dessas aulas improvisadas, algumas delas tomavam a palavra a partir de uma eloquência e uma convicção que se impunham como personagens.
Muitas cenas são filmadas por trás de janelas de vidro, resultando em um efeito de sobreposição do cotidiano e do mundo real nos rostos dos personagens, que falam de conceitos abstratos. Comente um pouco sobre esse dispositivo.
Sempre me fascinou o jogo dos reflexos e das sombras, dessas imagens que “estão aí” e não estão, que são imagens fantasmais, como o próprio cinema. Nesse caso, a decisão de filmar desde fora, através das janelas, obedece a uma necessidade de não romper o registro do filme que começa em uma lógica de documentário observacional. Uma sala de aula é um espaço público onde cabe a lógica do “observacional”. Quando vi a necessidade passar para o espaço privado – em diálogos que se desenrolam em um café, em uma cozinha ou no interior de um carro –, vi que não tinha direito de passar ao espaço interior sem quebrar essa lógica, esse registro que inicialmente se percebe como documental. Por outro lado, o filmar sem invadir seus espaços facilitava o trabalho dos meus atores, já que não são atores profissionais e assim não se alertavam invadidos em seu espaço. Depois, na sintaxe visual desses reflexos, gostei da economia que me dava sobre o espaço. A academia de musas é um filme rodado essencialmente em primeiros planos, sem imagens descritivas do espaço. Porém, a partir desses reflexos que às vezes não são mais do que manchas de cores, o espectador imagina o espaço: cria arquiteturas, paisagens e um imaginário da cidade. Vai, portanto, na direção do meu trabalho: tentar convocar um máximo a partir de um mínimo.
Seus filmes tematizam ambiguidades e limites entre o documentário e a ficção, a arte e a vida, a razão e a emoção. Você acredita que o cinema é capaz de capturar a essência dessas áreas de interstício e de sombra?
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Efetivamente, esse espaço é o que guarda maiores surpresas para mim. Quando terminei meu primeiro longa-metragem de ficção, com 23 anos, senti que algo se esgotava para mim no trabalho com os atores a partir de diálogos preestabelecidos. Naquele momento experimentei como que um beco sem saída, como uma dramaturgia estereotipada que eu não podia acreditar. Acudi então ao documentário, buscando outras formas de narrar, outras formas de representar e de contar histórias. De um lado está o desejo de conseguir uma captura viva, o gosto pelo espontâneo e inclusive pelo incerto e acidental. Como conciliar esses dois polos opostos do cinema? Seguramente todos os meus filmes se mantêm nesse conflito, nessa tensão entre o cálculo e o azar.
Seu filme é um belo canto ao poder de sedução da palavra. Qual é a importância da palavra em seu trabalho e como você a relaciona com a imagem em seus obras?
Nos meus filmes anteriores há poucos diálogos, era um assunto pendente. A palavra filmada tem uma problemática muito diferente da palavra escrita. Está violentada ou transformada pela forma de dizer, pelo poder de um gesto, de um olhar, de uma pausa, de um contraplano. Trata-se de uma autêntica “encenação da palavra”. Em princípio, meus personagens não falam a não ser de poemas, de rimas, de livros e bibliotecas. Porém, a ninguém escapa de que se trata de outra coisa: de relações de poder, de sedução, de ciúmes, de manipulação, de desejo… De temas que nos dizem respeito a todos para além do literário. Esses descolamentos entre o que se diz e o que se silencia, entre o que se diz e o que se pensa, têm no cinema seu espaço privilegiado.
A academia das musas
De José Luis Guerín
Drama, Espanha, 2015, 92min. Em cartaz no Guion Center 2 (16h05min e 19h30min), em Porto Alegre