Todos os anos, com a constância das marés, corpos sem vida são tirados das águas frias e agitadas da costa escarpada do norte da cidade de São Francisco.

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A maioria das vítimas é formada por homens de meia idade. Eles vestem roupas de mergulho pretas, geralmente com capuz. Frequentemente são encontrados em reentrâncias rochosas. Às vezes, é possível encontrar tubos de flutuação boiando por ali. E quase sempre, as vítimas são encontradas usando cintos com pesos que as ajudam a afundar.

Geralmente, os corpos são encontrados por pessoas que passam por ali. Se a neblina não estiver densa demais, as vítimas podem ser vistas do alto dos penhascos da região, onde salva-vidas observam dezenas de quilômetros de praias desoladas, e guardas armados ficam à espera de caçadores ilegais. Muitos dos corpos são tirados do mar por helicópteros de resgate com equipes acostumadas ao risco envolvido nas diversas operações que realizam todos os anos.

Esses são corpos de pescadores de abalones.

– Muita gente morre ao mergulhar em busca de abalones. Os salva vidas sabem disso. Basta passear por aqui e cada enseada nos lembra de alguma morte – afirmou Nate Buck, salva-vidas veterano do Condado de Sonoma, enquanto dirigia sua caminhonete pela Highway 1, com as ondas do Oceano Pacífico quebrando nas encostas a sua direita. Nos últimos 14 anos, ele perdeu as contas de quantos corpos ajudou a recuperar.

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O Abalone é um molusco comestível, um gastrópode de concha única encontrado nas águas costeiras de boa parte do planeta. Porém, o abalone vermelho é o maior e mais desejado de todos, mas só pode ser encontrado na costa oeste da América do Norte. Na Califórnia, com uma série interminável de proteções que visam proteger sua frágil população, o abalone vermelho só pode ser capturado no norte de São Francisco, e apenas de forma esportiva.

Parte do que atrai novos pescadores é a facilidade da atividade. Não é necessária qualquer experiência, nem muitos equipamentos. Tanques de ar são ilegais. Os pescadores de abalones simplesmente entram nas águas escuras, seguram a respiração e procuram pelos prêmios escondidos.

A concha grossa do abalone vermelho possui mais de 30 centímetros de diâmetro. Com cor de tijolo do lado de fora e prata perolado por dentro, as conchas são verdadeiros troféus, e acabam sendo colocadas na parede, sobre um pedestal, ou como decoração na entrada das casas. A carne interna, que chega a pesar alguns quilos, é uma iguaria, com o sabor e a textura de lulas.

– Trata-se de um ícone da Califórnia. Essa é uma espécie que faz parte de nosso passado na pesca. E por conta do seu tamanho, o maior do mundo, ela pode ser comparada às sequoias da região – afirmou Laura Rogers-Bennett da Universidade da Califórnia, no Laboratório Marinho Davis Bodega, além de bióloga sênior do Departamento de Peixes e Animais Silvestres da Califórnia.

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Durante a estação de pesca que dura sete meses – de abril a novembro, com um pequeno hiato em julho – milhares de pessoas chegam todo o fim de semana ao litoral selvagem dos condados de Sonoma e Mendocino. Os mergulhadores se baseiam na tradição e na camaradagem, como os caçadores de cervos e faisões em outras partes do país. Eles saem de carro, caminhonete ou van, colocam a roupa de borracha, levam nas costas o máximo de equipamentos que são capazes de carregar e descem pelas escarpas perigosas até chegarem ao mar agitado.

Aqueles que são corajosos o bastante para mergulhar bem abaixo da superfície em busca de abalones, ou que procuram pelas rochas do litoral durante a maré baixa, raramente conseguem mais de três em um dia, ou 18 no ano todo. Cada abalone deve ter ao menos 17,8 centímetros de diâmetro, o que significa uma idade de ao menos 10 anos. Cada concha deve ser marcada e registrada imediatamente e não pode ser revendida.

Mas a tentação é real e o mercado negro dos abalones vermelhos é bastante ativo, já que uma concha grande pode valer US$ 100 ou mais.

O abalone, em outras palavras, representa muita coisa no norte da Califórnia.

– É o último vestígio dos caçadores-coletores aqui da região. Existe muito perigo, emoção e beleza – afirmou Sydney Smith-Tallman, cuja família é dona de uma loja de mergulho em Fort Bragg que atende principalmente os pescadores de abalones.

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E embora ninguém acompanhe os números com precisão, até uma dúzia de pessoas morre todos os anos.

O sonho do mergulhador

O santo graal para os mergulhadores é conseguir um abalone com uma concha de mais de 25 centímetros. Ninguém conseguiu pescar mais que Dwayne Dinucci, professor aposentado de desenho técnico que vive em Union City, na Califórnia, nos arredores de Oakland. A placa de seu carro diz: “POPNAB” – “pop an ab” é uma expressão muito comum para designar a pesca de abalones, porque elas fazem um som de “pop” quando são arrancadas das pedras onde ficam presas.

– A marca de 25 centímetros é importante. É o sonho do mergulhador. Até hoje, 45 anos depois de eu ter começado, fico emocionado sempre que encontro um abalone de 25 centímetros – afirmou.

Dinucci possui quatro dos 10 maiores abalones já registrados na Califórnia, de acordo com o Departamento de Peixes e Animais Silvestres da Califórnia.

– O desafio é encontrar o maior abalone do mundo. Minha lápide irá dizer: “Nunca encontrou, mas procurou feito um louco – afirmou Dinucci.

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As paredes e prateleiras de sua garagem são cobertas com centenas de conchas de abalones, como calotas de carro. Elas ficam perfeitamente alinhadas em ganchos e rotuladas por tamanho, data e localização. Os locais são intencionalmente vagos, porque um bom pescador de abalones não revela esse tipo de segredo.

Dinucci conta que já foi jogado contra as rochas por cheias rápidas ou ondas traiçoeiras, conhecidas por arrastar os banhistas para longe da praia. Em muitos locais, a orla pode ser inacessível por conta dos penhascos.

– Por que tanta gente morre? Quase sempre por inexperiência. Recebemos muitos mergulhadores do sul da Califórnia, mas a costa norte é diferente. Ela é complicada e pode ficar muito perigosa de uma hora para a outra. O importante é saber por onde sair. Entrar é moleza. O difícil é sair do mar – afirmou.

Perigo dentro e fora da água

Nem todas as mortes relacionadas aos abalones ocorrem por afogamento. Em junho, um homem de 55 anos mergulhou para a morte depois de escalar um desfiladeiro de mais de 30 metros de altura em Mendocino.

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Entretanto, a maioria das pessoas que morrem fora da água sofrem ataques cardíacos. Elas dirigem por horas para chegar à costa e ficam loucas para voltar com algum abalone, um desespero que as leva a ignorar pistas claras que a maré, as ondas e as condições climáticas oferecem aos mergulhadores experientes. A temperatura da água geralmente varia de 8,3 a 11,7°.

Os mergulhadores utilizam roupas de mergulho e cintos com pesos que chegam a 13,5 quilos, criados para ajudá-los a afundar. Às vezes, entram em pânico quando são carregados por ondas rápidas ou pela correnteza. Outros perigos se escondem nas profundezas, de emaranhados de algas marinhas ao grande tubarão branco.

– Todas essas coisas geram muito estresse. E tudo isso, infelizmente, é demais para algumas pessoas – afirmou Buck, salva vidas do Condado de Sonoma.

Naturalmente, a maioria dos pescadores de abalones não enxergam seu hobby como um risco, mas uma recompensa. No norte da Califórnia pesca de abalones é celebrada, não temida.

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O volume total de abalones capturadas legalmente no norte da Califórnia caiu para menos da metade nos últimos 25 anos, e as restrições se tornaram ainda maiores em 2014. Velhos pescadores temem essa tendência e acreditam que algum dia a atividade possa ser banida completamente. Alguns dizem que isso seria uma catástrofe para a economia e a cultura da região, sugerindo que essa medida possa aumentar, ao invés de diminuir a pesca ilegal.

A única certeza é que enseadas do norte da Califórnia ficarão mais vazias. E que o trabalho dos salva vidas que patrulham as águas agitadas da região vai ficar mais fácil, caso eles não percam o emprego.

– A maior parte do nosso trabalho é salvar os pescadores de abalone. Eles são a razão pela qual estamos aqui – afirmou Buck.