Em dois meses, mais do que dobrou a quantidade de calçados gaúchos retidos na fronteira com a Argentina. Já são 750 mil pares vendidos que não chegam ao destino por falta de liberação do governo vizinho, calcula a entidade que representa o setor, a Abicalçados.
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É mais um exemplo de um antigo problema sem solução à vista: as barreiras comerciais impostas pelo governo Cristina Kirchner. Com o cancelamento – sem nenhuma justificativa oficial – de autorizações de importação, também estão parados alimentos e móveis, causando prejuízos para ambos os lados.
Ao avaliar as perspectivas comerciais entre os dois países, em encontro na Federação das Indústrias do Estado (Fiergs), economistas, cientistas políticos e empresários colocaram dúvidas sobre o futuro da parceria. Em relação a eventos similares anteriores, o desta terça-feira foi marcado por um tom pessimista.
– As eleições legislativas de semanas atrás apontam que a chance de Cristina vencer ou eleger um sucessor é cada vez menor. Mas a história mostra que a economia argentina é instável. Seja do ponto de vista do crescimento ou da inflação. Então, não dá para esperar um período de estabilidade nos próximos anos. Mesmo a entrada de um novo governo não significa melhoras expressivas. São 12 anos que a oposição está fora do poder e, para se adaptar, leva tempo – afirmou o economista argentino Juan Carlos de Pablo.
Apesar de o Brasil manter saldo positivo nas relações comerciais com a Argentina, esse resultado sofre uma distorção devido ao desempenho da indústria paulista, que exporta sozinha mais da metade dos produtos manufaturados para o país vizinho. Ao todo, 21 dos 26 Estados têm déficit no intercâmbio com a Argentina.
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O impacto é maior nas contas do Rio Grande do Sul. No ano passado, o Estado teve o pior resultado em 10 anos, déficit de US$ 2,5 bilhões. Santa Catarina vem em seguida, com saldo negativo de US$ 500 milhões. Nos primeiros nove meses de 2013, a balança gaúcha com a Argentina acumula déficit de US$ 1,4 bilhão.
Reação faz representante do Itamaraty mudar discurso
Ex-presidente do Banco Central, Gustavo Loyola compartilha a visão pessimista de Pablo sobre o futuro da parceria entre os dois países, e vai além ao dizer que o Mercosul como bloco econômico “está morto”.
– O problema não é só da Argentina. É do Brasil também. Principalmente depois da suspensão do Paraguai e a entrada da Venezuela. Se colocou um homem-bomba dentro do Mercosul. A Venezuela é tudo menos uma economia de mercado. Nos tornamos um bloco muito mais político do que econômico. O Mercosul está morto e esperando a missa de sétimo dia – afirmou Loyola.
Voz dissonante no encontro, Luis Guilherme Cintra, representante do Itamaraty, afirmou que a situação comercial entre os dois países não é tão ruim quanto parece.
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– Sabemos que os problemas existem, mas os números do comércio são maiores e melhores – disse, referindo-se às importações e exportações brasileiras como um todo.
Percebendo a pouca receptividade da plateia, formada em grande parte por gaúchos, acrescentou:
– Infelizmente, o Rio Grande do Sul vai na contramão. Não sabemos se vamos resolver o problema com o comércio de calçados no curtíssimo prazo, mas prometemos fazer barulho em Buenos Aires.
Fertilidade de entraves
Nos últimos anos, o governo argentino adotou uma série de barreiras com o Brasil. A finalidade é proteger a indústria e principalmente reduzir as importações para reter dólares no país governado por Cristina Kirchner.
Limite à importação
Atualmente, a Declaração Jurada Antecipada de Importação (DJAI) é a principal barreira aos produtos brasileiros. Desde fevereiro de 2012, a Argentina exige esse documento dos importadores locais, que devem entregá-lo ao fisco antes de qualquer compra no Exterior.
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Outros órgãos, como a Secretaria de Comércio Interior, devem autorizar a importação. Empresas com importações anuais acima de US$ 500 mil precisam esclarecer à secretaria se há alguma maneira de equilibrar a balança comercial, ou seja, se podem exportar algum produto em contrapartida. No início, a regra incidia apenas sobre bens de consumo, mas foi ampliada para insumos e bens de capital. Por ser burocrática e constranger o importador a dar uma contrapartida em exportações, a medida atrasa ou freia negócios.
Setores mais afetados: autopeças, vestuário, calçados, medicamentos, cosméticos e perfumes, além da linha branca (geladeira, fogão e lavadora).
Uno a uno
De forma crescente a partir de 2009, uma regra não escrita recomenda aos importadores locais que a cada dólar pago por mercadorias estrangeiras, vendam o equivalente ao Exterior em produtos nacionais. A diretriz ganhou ferramenta de aplicação com a exigência da declaração juramentada, que registra o volume de importação.
Controle na área de serviços
A Declaração Jurada Antecipada de Serviços (DJAS) pode ser considerada uma extensão da DJAI, ampliando o controle sobre as operações de importações da Argentina. Empresas estrangeiras no país vizinho bem como companhias argentinas no Exterior precisam declarar a prestação de serviços. Entrou em vigor em abril do ano passado.
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Setores mais afetados: serviços de informação e informática, patentes e marcas, direitos do autor, serviços empresariais, entre outros.
Fiscalização
Foram criadas equipes técnicas multidisciplinares de verificação, inspeção e valoração aduaneira. O objetivo é fortalecer o controle nas alfândegas para combater a evasão fiscal e a falsa declaração de mercadorias.
Licenças não automáticas
Adotadas ainda em 2009, provocam demora no ingresso dos produtos brasileiros na Argentina.
Embora o prazo aceito pelas regras internacionais seja de 90 dias, em muitos casos a demora supera bastante esse período. Em algumas situações, mais de um ano.
Setores mais afetados: calçados, máquinas, pneus, autopeças, móveis, têxteis e produtos da linha branca.
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Certificados sanitários
Por meio desse documento, o governo argentino aumenta as restrições na importação de alguns alimentos. Desde 2011, a autorização desses certificados é postergada – em alguns casos, cerca de 300 dias.
Setores mais afetados: os que envolvem produtos perecíveis como balas, chocolates, biscoitos e massas.
Produção local
Empresas que exportam muito para a Argentina, como indústrias brasileiras de calçados e de máquinas agrícolas, foram pressionadas pelo governo local a fazer investimentos em produção no país, deslocando parte da fabricação.
Controle de moedas
O governo apertou ainda mais o controle que vinha aumentando desde novembro de 2011 nas negociações que envolvam moeda estrangeira. Para comprar dólares ou reais, é preciso pedir autorização ao fisco.
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