A espionagem americana que se alastrou por boa parte da América Latina está sendo assimilada como uma rara oportunidade de estratégia política pelos países da região.

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A expectativa é de que isso se evidencie na cúpula do Mercosul, amanhã, em Montevidéu.

O encontro, que tinha tudo para repetir eventos protocolares, ganhou em relevância. Os presidentes já costuram um comunicado que deve pedir informações ao governo americano ou até uma retratação.

A revelação de que a Agência de Segurança Nacional (NSA, na sigla em inglês), dos Estados Unidos, monitora milhões de dados telefônicos e de internet mundo afora, foi feita pelo técnico em computação Edward Snowden. Colocou o mundo em alerta. Ontem, Dilma determinou uma varredura nos acordos de inteligência de órgãos do governo com os EUA para se certificar de que nada autorizava americanos a monitorar comunicações de brasileiros, o que, segundo ela, configuraria uma ilegalidade. O ministro da Defesa, Celso Amorim, disse, no Senado, que redes e sistemas de computação no Brasil são “vulneráveis”, a ponto de ele próprio evitar e-mails quando tem algo importante a tratar.

– O discurso antiamericano de Venezuela, Equador e Argentina vai ganhar força. A retórica será de que houve abuso do império americano contra a soberania regional – analisa Denilde Holzhacker, especialista em América Latina da ESPM.

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As oportunidades abertas pelas escutas são de política externa e interna (veja quadro ao lado). O caso da Venezuela é peculiar. O presidente Nicolás Maduro mede as palavras. Ao mesmo tempo em que vê se justificar o tradicional discurso antiamericano, mostra prudência. Os venezuelanos ocuparão pela primeira vez a presidência do bloco. É importante provar que o discurso incendiário pode ser moderado para se adaptar ao papel de líder regional.

Mas não é só isso. Do proselitismo incendiário até ações práticas, há grande distância. A Venezuela, como outros países da região, tem interesses estratégicos em relação aos EUA e à Rússia (país onde está refugiado Snowden). Maduro precisa de respaldo para conduzir um país dividido e em crise de desabastecimento. Trata, então, de medir onde termina sua retórica e começa seu pragmatismo.

Arremedo de Guerra Fria

A rota das escutas americanas percorreu na região, além de Brasil, México e Colômbia (os mais visados), Panamá, Costa Rica, Nicarágua, Honduras, Paraguai, Chile, Peru e El Salvador.

Professora de política internacional da Universidade de São Paulo, Deisy Ventura diz que, “do 11 de setembro de 2001 para cá, o mundo caiu de novo na lógica da Guerra Fria, se é que um dia dela saiu, e, pior ainda, porque o segundo polo é indeterminado, pode ser qualquer um”. Mas pondera, ao dizer que “a segurança nacional justifica qualquer coisa para os EUA”:

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– Sobre esse episódio das escutas, eu diria: assistam ao documentário O Dia que Durou 21 anos (de Camilo Tavares, com pesquisa do seu pai, o jornalista Flávio Tavares), que deveria ser transmitido em horário nobre. Verão que não há nada de novo.

A tensão chegou a se elevar quando países europeus impediram que o voo onde estava o presidente da Bolívia, Evo Morales, pousasse em seus aeroportos. O episódio foi visto como servilismo aos EUA, porque o motivo para o impedimento foi a suspeita de que Snowden estivesse junto na aeronave. Houve protestos. Nada mais.

Enquanto isso, Snowden espera há em uma área de passageiros em trânsito do aeroporto de Sheremetyevo, em Moscou. Apenas Bolívia, Nicarágua e Venezuela lhe ofereceram asilo. A tendência é de que, caso seja possível o asilo, ele siga para Caracas.

Reações à xeretagem

Entenda o que está por trás das manifestações de países latino-americanos:

Brasil

– Fustigada pela mais grave crise do seu governo, a presidente Dilma Rousseff pôde mudar o foco do noticiário. Reagiu ao episódio dizendo que as escutas violam os direitos humanos e a soberania dos países. Levará o caso para a cúpula do Mercosul e à ONU. O país se negou a dar asilo a Snowden.

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Argentina

– Com baixa popularidade, a presidente Cristina Kirchner tem intensificado o discurso antiamericano. Disse que sentiu um “frio na espinha” ao saber da espionagem e pediu providências ao Mercosul.

Colômbia

– Políticos da oposição pedem que o governo de Juan Manuel Santos, importante aliado americano, proteste contra os EUA. Santos, porém, tem mantido discrição. A saia justa do presidente é proporcional à proximidade que seu país tem com os EUA, na economia e no combate ao narcotráfico.

Venezuela

– O país, que costuma elevar a retórica antiamericana, ofereceu asilo a Snowden (assim como Nicarágua e Bolívia). E é justamente a Venezuela que passará a falar pelo Mercosul, já que assume pela primeira vez a presidência do bloco.

Chile

– O Chile condenou a espionagem e não descartou pedir explicações aos EUA. Com eleições presidenciais em novembro, o governo de centro-direita quer mostrar firmeza ao público interno.

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Equador

– País que já afronta os EUA abrigando o fundador do WikiLeaks em sua embaixada em Londres, foi apoiador de primeira hora a Snowden, mas o presidente Rafael Correa baixou o tom. Segundo informações da imprensa britânica, ele estaria incomodado com o protagonismo do WikiLeaks no caso. Com a revelação de que os EUA monitoraram também dados equatorianos, o governo volta à retórica comparada à do finado Hugo Chávez.

México

– O governo está sendo criticado internamente por não manifestar indignação. Ali, o problema é óbvio: como entrar em confronto com o vizinho e principal sócio comercial?