Além das mudanças provocadas pela Reforma Política, que impactam no financiamento das campanhas, acesso à verbas dos fundos partidários e tempo de propaganda na televisão mediante o desempenho eleitoral, os candidatos terão mais um desafio nas eleições deste ano: as fake news. Diferentemente das novas regras trazidas pela reforma, mais direcionadas aos políticos, a propagação de informações falsas impacta também a vida de todos os eleitores.

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Dentro do contexto eleitoral, Marcelo Peregrino Ferreira, advogado com título de mestre em Direito Constitucional e doutorando pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), analisa os desdobramentos que as chamadas fake news podem ter nas eleições brasileiras sob a ótica de quem recentemente atuou como observador internacional nas eleições da Colômbia.

Na avaliação do jurista, a internet e as redes sociais representam uma alteração profunda na política e essa discussão é importante para conscientizar não apenas os eleitores, mas a população em geral, para que se tenha prudência com a qualidade da informação consumida e compartilhada.

O que o senhor observou durante o tempo em que passou em Bogotá acompanhando as eleições presidenciais na Colômbia?

As últimas eleições na Colômbia foram um momento de reconciliação nacional. Eu fui convidado pelo Conselho Nacional Eleitoral, pelo Magistrado Armando Novoa, muito em razão da credibilidade da Justiça Eleitoral catarinense. Foram as primeiras eleições após o acordo com as Farc (Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia), para por fim ao conflito armado. As Farc se tornaram um partido e participaram das eleições. Senti a força da democracia colombiana e a vontade das pessoas que o acordo de paz vingasse. Havia uma certa tensão, pois há 50 anos que não se tinha uma eleição com paz e harmonia. O povo colombiano demonstrou ter confiança na democracia representativa e deu um exemplo de superação institucional impressionante, eu diria, sem precedentes.

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Assim como as Farc, na Colômbia, se tornaram um partido político, o senhor acredita que as facções criminosas no Brasil podem caminhar para isso?

Não. Ali, a discussão era outra. Partes do Estado colombiano, grandes extensões territoriais estavam a cargo, sob a guarda, por assim dizer, desses grupos guerrilheiros. Isso não acontece no Brasil. Aqui temos criminosos comuns. O que se passou na Colômbia era o risco da própria divisão do país, havia áreas que eram dominadas por facções, terroristas que queriam o comunismo ou outros regimes. Aqui, o que se vê é o criminoso comum. Acho que não há sequer a necessidade de diálogo. É algo bem mais profundo e histórico (na Colômbia). Lá o histórico de violência política tem mais de 50 anos, nós não tivemos essa experiência ainda e nem passamos perto disso.

O senhor recorda algum exemplo de propagação de informações falsas nas eleições colombianas?

As eleições foram para o Senado e para a Câmara, mas em paralelo houve a consulta intrapartidária para escolha dos pré-candidatos a presidente da República. A consulta se deu entre os grupos de esquerda e de direita. Cada eleitor escolhia a cédula de seu grupo político e dali fazia as opções entre as várias candidaturas. É uma espécie de primária aberta ao público. O candidato Petro Urrego, vencedor da pré-candidatura das esquerdas, foi alvo de uma intensa campanha difamatória, por meio de grupos de WhatsApp, numa tentativa de ligá-lo à violência do passado, mas eu não soube de qualquer medida judicial para conter essas manifestações.

Há algo implantado lá que poderia ser aplicado nas eleições brasileiras? De que forma?

As redes sociais apenas aumentam a velocidade e alcance das práticas que são ínsitas às campanhas eleitorais. Boatos, mentiras, críticas sempre existiram nas eleições. A novidade é a forma exponencial de divulgação, de modo a afetar a própria normalidade do pleito. Lembro de uma frase no livro do Fernando Neisser que vale para as eleições: “Uma grande parte da informação obtida na guerra é contraditória. Uma parte maior é falsa. E, de longe, a maior parte é duvidosa”. Um exemplo é o de Marta Suplicy na eleição municipal de 2008. Sua campanha indagava se Gilberto Kassab era casado e tinha filhos. Intuiu-se uma observação sutil sobre orientação sexual. O eleitor neste caso parece que se identificou mais com o ofendido no chamado efeito underdog. O Tribunal Regional Eleitoral de São Paulo depois proibiu a propaganda. Veja que a campanha negativa também tem seus riscos. E não se pode esquecer da campanha 1989 em que Fernando Collor acusou Lula de ter uma filha fora do casamento e de ter realizado um aborto. Walter Porto conta um episódio de 1906, em Alagoas. Os membros da oposição à Oligarquia Malta distribuíram no dia das eleições telegramas dirigidos aos chefes políticos, para que “respeitassem a liberdade de voto e apurassem seriamente o resultado das urnas”. Ângelo Neto, da oposição, foi eleito nesse dia. Enfim, mentira e eleição sempre andaram juntas, porque é o mais perto da guerra que se chega.

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Um estudo publicado na revista estrangeira Science afirma que uma história falsa atinge as pessoas seis vezes mais rápido do que uma verdade. Nesse contexto e com base no que o senhor viu na Colômbia, você acredita que atualmente as informações falsas superam as verdadeiras?

As notícias falsas, em favor de alguém, são criadas para terem um aumento de seu impacto. Então, é natural que tenham uma difusão mais rápida. Há também um sentimento mórbido das pessoas em desejarem o escândalo, a novidade maldosa.

O mais recente caso de fake news ocorreu no episódio da execução da vereadora do Rio de Janeiro, Marielle Franco. Uma desembargadora do TJRJ divulgou informações falsas sobre a parlamentar. O que fazer quando as fake news partem de quem tem poder? Nesse caso específico, mesmo sabendo quem foi o autor da fake news, nada foi feito. O que isso representa?

Os servidores públicos e agentes políticos não se despem de suas atribuições legais, de forma absoluta. Um juiz, um delegado continuam a carregar o denodo exigido na vida pública para a vida privada. Há previsão legal para tanto e esses agentes públicos podem ser responsabilizados por condutas irregulares em suas vidas particulares também. Aqueles que não tem idoneidade moral, a rigor, não podem obter a inscrição na OAB, por expressa disposição legal.

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Recentemente o ministro do Tribunal Superior Eleitoral Luiz Fux afirmou que combateria as fake news com apoio da imprensa. O senhor acredita que é papel da imprensa monitorar isso? O que a Justiça Eleitoral poderia fazer para não apenas identificar quem propaga informações falsas, mas também para coibir essas ações?

Malgrado a Justiça Eleitoral tenha o dever de garantir a normalidade e legitimidade das eleições, não me parece possível um controle das redes sociais, no que diz respeito à verdade das informações. O Código Eleitoral já proíbe propaganda de guerra, de incitamento de atentado contra pessoas, calúnia, difamação e injúria, dentre outros, e na legislação eleitoral há oito crimes só versando sobre propaganda, sem contar as limitações formais e sanções civis. Imagine se um candidato diz que fez 11 mil metros quadrados de obras na campanha eleitoral. O seu adversário o representa e diz que a informação não é verdadeira. Como poderá um juiz, nos prazos da Justiça Eleitoral, determinar a verdade? Simplesmente não é possível e nem desejável essa intermediação judicial. Por outro lado, os perfis falsos, os conteúdos ilegais são praticamente impossíveis de serem evitados. Há pessoas que exploram essa atividade com robôs, com a criação de perfis falsos que são ativados durante as campanhas eleitorais, de maneira sistemática. O controle de mérito é bastante problemático, porque teremos o Estado, em uma campanha eleitoral, dizendo o que é a verdade, o que não me parece adequado. Creio que há um “castrante paternalismo” aqui, como se o povo não soubesse discernir as notícias e precisasse de anteparo judicial. Isso mina, de certa forma, o processo de aprendizado democrático, porque se o Estado me entregará a verdade, eu não preciso pensar sobre o assunto. Há uma infantilização do eleitorado, mesmo efeito da Lei da Ficha Limpa. Eu acredito no regime democrático e na capacidade do povo de se autodeterminar, sem que intermediários lhe digam o que é verdade, bom ou moral. Nas democracias, o poder de decisão é dado, em última análise, ao povo. A Justiça Eleitoral tem tido uma abordagem muito contida ao analisar, por exemplo, os direitos de respostas em campanhas eleitorais e este deve ser o caminho. Parece-me que se deve garantir a liberdade de informação, vedado o anonimato, deixando para os eleitores a decisão sobre o tema.

Muitas vezes são os próprios candidatos, por meio de seus comitês e marqueteiros, divulgam as informações falsas sobre outros políticos. Seria o caso de montar uma fiscalização que foque nos candidatos, e não nos populares, que apenas replicam essas notícias?

Já há legislação sobre o assunto. Via de regra, as concessões de serviço público, rádios e TV, pela sua natureza, sofrem mais restrições, em especial quanto à igualdade de oportunidades entre os candidatos. A palavra escrita e as redes sociais devem ser tratadas com mais liberdade. A chamada notícia negativa de algum candidato é absolutamente necessária e deve, sim, ser produzida por adversários, com respeito aos direitos de personalidade, isto é, sem ofensas. Tenho o direito de saber de todas as informações sobre os candidatos e mais ainda aquelas que somente serão veiculadas por seus adversários. Nenhum correligionário do candidato irá expor seus defeitos. Veja-se que é exatamente neste momento que o debate e a livre circulação de ideias são mais necessários, é a ocasião em que as pessoas decidem em quem votar e a restrição de informações, mesmo aquelas negativas, prejudica a qualidade do voto. A pessoa do candidato também está sob escrutínio, muito embora o debate sobre a política em si não possa ser olvidado e talvez fosse desejável sua predominância. Quem quer privacidade e sigilo, não deve ser candidato. As campanhas eleitorais são curtíssimas e os meios de propaganda, cada vez mais reduzidos. Restringir ainda mais é sufocar a democracia.

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A OAB prevê alguma ação no sentido de combate as fake news? O senhor já atuou em casos assim ou conhece algum advogado que tenha sido procurado após algum candidato ser prejudicado por uma informação falsa?

O papel do presidente (da OAB SC, Paulo) Brincas e da instituição que ele comanda é essencial no sentido de permitir o debate franco entre os candidatos e fomentar a boa qualidade das informações, como ele tem feito com a campanha do Voto Consciente. Diariamente, há notícias de advogados que acabam sendo confundidos com os malfeitos de seus clientes ou tratados como se fossem eles mesmos os réus. Na advocacia criminal, esse drama é vivenciado todos os dias pelo tratamento dispensado a esses profissionais. Nas últimas eleições ao Senado, em que atuei como advogado, a criação de perfis falsos e até um curioso rap pejorativo, tendo como objeto o candidato, me levaram a ajuizar quase diariamente representações na Justiça Eleitoral para retirada de ofensas oriundas de anônimos na rede social.

Na avaliação do senhor, as fake news podem alterar o rumo de uma eleição, como se especula ter ocorrido nos EUA, com Donald Trump?

Creio que há, de fato, essa possibilidade. Cabe aos eleitores, à imprensa e à sociedade organizada checarem as informações e auxiliar nesse controle. Se trata de um novo risco ao regime democrático, mas que não pode autorizar o controle excessivo da liberdade de informação durante o pleito, sob pena de se desvirtuar o próprio processo eleitoral.

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Qual conclusão podemos tirar a partir dessas constatações?

A internet e as redes sociais representam uma alteração profunda na política. Acho que essa discussão é importante para que as pessoas tenham cuidado com a qualidade da informação que leem e, mais do que isso, que compartilham. Precisamos ter muito cuidado em compartilhar material escandaloso ou explosivo para que não sejamos veículos dessas informações falsas.