A advogada Marília Benevenuto Chidichimo já tinha elaborado o luto pela morte do pai, o médico Alberto Benevenuto. Afinal, três décadas tinham se passado desde o acidente que o matou, em 1978. Mas, exatos 30 anos depois, o fantasma da suspeita se abateu de forma avassaladora sobre os familiares do doutor – conhecido pela relação estreita que mantinha com o ex-presidente João Goulart (morto em 1976).
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Em depoimento à Polícia Federal brasileira, um antigo espião da polícia política uruguaia, Mário Neira Barreiro, declarou:
– O doutor Benevenuto acabou sendo morto por causa dos insistentes recados que enviava desde o Brasil para o Jango Goulart e, depois, para o ex-governador gaúcho Leonel Brizola.
O caso será agora investigado pela Comissão Nacional da Verdade, que apura as violações de direitos humanos ocorridas durante o regime militar. Uma das providências deve ser a convocação do espião uruguaio para depor. E Neira Barreiro não é um desinformado. Desde que foi preso por assaltos em Porto Alegre, no final dos anos 1990, admitiu ser ex-agente dos serviços de inteligência militar durante a ditadura uruguaia e ter tido envolvimento em uma suposta operação para matar Jango.
Conforme o espião, Benevenuto visitou o ex-presidente na Argentina, onde vivia em exílio, e o avisou da existência de um plano para eliminá-lo. Jango acabou morrendo, supostamente de infarto, em dezembro de 1976. Um ano se passou e o médico Benevenuto colidiu seu Dodge Dart contra um ônibus, em 28 de janeiro de 1978, em Osório, morrendo na hora. O carro, segundo testemunhas, vinha em baixa velocidade e perdeu o controle.
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Filha depôs à Comissão da Verdade, em Brasília
Teoria conspiratória? Até pode ser, mas o que escandalizou a filha de Benevenuto é que Neira Barreiro mencionou o nome do médico sem ser questionado pelos policiais a respeito dele. Fez isso quando comentava a cadeia de pombos-correio montada por Jango e Brizola, ambos gaúchos, para ajudá-los com dinheiro e notícias no exílio. Um desses mensageiros era Benevenuto, que também atuava de forma esporádica como médico de Jango.
– Um dia tomamos conhecimento de que o doutor Adalberto foi visitar o João Goulart e avisou: “Presidente, tenho um amigo que é da inteligência uruguaia e disse que existe um plano para lhe assassinar” – declarou o espião, em depoimento gravado em vídeo em dezembro de 2008.
Neira Barreiro passou anos na Penitenciária de Alta Segurança de Charqueadas (Pasc) e, desde fevereiro, está em liberdade condicional. Seu depoimento, descoberto há pouco pela filha de Benevenuto, reabriu uma ferida entre os familiares do doutor.
A suspeita de que o acidente foi assassinato está embasada numa trágica coincidência: opositores do regime militar morreram de forma suspeita no espaço de um ano. O espião uruguaio diz que tudo teria sido arquitetado por bolsões radicais das Forças Armadas do Cone Sul, dentro da Operação Condor (colaboração entre militares para neutralizar opositores das ditaduras).
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Com ajuda dos advogados Ricardo Cunha Martins e Carolina Fernandes Martins, especializados em direitos humanos, Marília exige um fim para o mistério. Ela já depôs à Comissão da Verdade, em Brasília, e agora pede ajuda à procuradora da República Suzete Bragagnolo, que abriu inquérito civil público para investigar a morte de Jango. A ideia é que o acidente de Benevenuto seja investigado junto, a começar por novo depoimento do espião uruguaio.
– Pode ser teoria da conspiração, mas por que esse ex-agente mencionaria o nome do meu pai, sem ser perguntado? – questiona Marília.
Pombo-correio do ex-presidente
Alberto Benevenuto, desde cedo, se interessara pelos movimentos estudantil e sindical. Natural que, após fama adquirida no atendimento a pessoas carentes, se elegesse com facilidade vereador em São Borja, pelo antigo PTB, em 1963.
Era simpatizante do clandestino Partido Comunista Brasileiro, registram as anotações do Serviço Nacional de Informações (SNI).
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Após o golpe, Benevenuto procurou refúgio no Uruguai e na Argentina. À distância, foi indiciado por “tramar a derrubada, por meios violentos, do atual governo do Brasil”, segundo o SNI.
Voltou ao Brasil em 1966 e se comprometeu em comunicar aos militares cada vez que se ausentasse. Mas continuou visitando Jango no exílio, levando recados e dinheiro.
Mortes suspeitas
Em um intervalo de nove meses (entre 1976 e 1977), o Brasil perdeu três líderes cotados para disputar a Presidência – todos inimigos da ditadura. Existe a suspeita de assassinato do trio.
Juscelino Kubitschek – O ex-presidente morreu em 22 de agosto de 1976 numa colisão do seu Opala contra uma carreta, em Resende (RJ). Amigos dizem que o desastre foi armado.
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Carlos Lacerda – O ex-governador morreu na clínica São Vicente, no Rio, em 21 de maio de 1977. Tinha 63 anos e fora internado com gripe. Há suspeita de envenenamento.
João Goulart – O ex-presidente morreu em 6 de dezembro de 1976, supostamente de ataque cardíaco, no exílio. O espião Neira Barreiro diz que Jango morreu envenenado.