Com qual idade você montou seu primeiro aplicativo? Em um universo dominado por homens, meninas de apenas 12 anos têm se destacado, criando softwares para ajudar na limpeza de praias e separação de lixo, por exemplo. As oportunidades vêm de diferentes projetos que inserem as adolescentes de escolas públicas no mundo da tecnologia — em uma tentativa de aumentar o protagonismo feminino na área e mudar o cenário da profissão: hoje, em Santa Catarina, apenas 22,8% de empreendedores no setor são mulheres.
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As iniciativas que despertam o protagonismo feminino na tecnologia, formam uma grande corrente de inspiração, onde jovens que ontem eram alunas, tornam-se mentoras para impulsionar novos talentos.
Foi isso o que aconteceu com Júlia Sena. A jovem de 19 anos se aproximou dos assuntos relacionados à tecnologia aos 14 após sua professora de informática falar sobre o Technovation Girls Florianópolis, programa que incentiva meninas de 10 a 18 anos a criarem soluções para problemas da sociedade. Segundo Júlia, tudo começou “por pura curiosidade”.
— Quando ela [a professora] divulgou o projeto, eu me senti interessada, mas não com o intuito de conseguir alguma coisa relacionada a trabalho. Mas, só por curiosidade. Eu fui com algumas colegas de sala, fomos com uma ideia, mas depois mudamos completamente. Eu tive alguns problemas de equipe na época, e, no final, eu acabei desenvolvendo sozinha o aplicativo — conta.
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O software desenvolvido pela jovem — que era aluna da Escola Básica Herondina Medeiros Zeferino, no Norte da Ilha — apresentava soluções para o descarte de materiais específicos como pilhas, baterias e lixo eletrônico. O aplicativo mostrava os locais apropriados onde a população poderia deixar esse material.
— Com essa ideia eu ganhei a edição de 2017 [do Technovation Girls] e ganhei uma bolsa de estudos de dois anos sobre programação básica. Foi aí que realmente surgiu o interesse. Quando eu comecei o curso, vi outras linguagens de programação, robótica, jogos e a área que eu gostei mais foi a programação — conta Júlia que hoje trabalha como desenvolvedora front-end.
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A semente plantada anos antes, fez com que a jovem terminasse o Ensino Médio sabendo que tinha aptidão para a área, e as escolhas seguintes sobre a carreira foram pautadas no conhecimento adquirido durante a adolescência.
— Eu me formei no Ensino Médio e queria fazer algo voltado para a tecnologia, mas não sabia o quê. Tem muitos cursos nessa área, mas alguns são antigos e eu não queria algo muito enraizado, que começasse lá do zero com matemática básica e algorítimo. Então eu fiz um curso técnico em desenvolvimento de sistemas no Senai e ele é voltado para o mercado de trabalho. Ele é mais rápido do que uma faculdade e eu queria ver se realmente ia curtir. Agora eu estou no último semestre e me formo no mês que vem — explica Júlia.
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Mentoria e inspiração para outras meninas
A experiência vivida por Júlia durante os três meses de desenvolvimento de projetos no Technovation Girls fez com que a estudante quisesse ajudar outras meninas a terem oportunidades parecidas com as que ela viveu. Aos 18 anos, a jovem decidiu se inscrever para ser mentora do programa.
— No ano passado eu completei 18 e queria muito ser mentora para passar de novo por essa experiência, mas pelo outro lado da moeda. No próprio site é possível se inscrever para ser mentora e você escolhe uma área para ajudar as meninas. Eu coloquei tecnologia e programação — diz.

Duas das meninas que tiveram a Júlia como mentora durante a última edição do Technovation, fizeram parte da equipe “Time Garotas de Sucesso”, que desenvolveu o aplicativo Save Ocean, relacionado à limpeza dos mares. O grupo empatou na disputa pelo primeiro lugar com as meninas da equipe Colour Home.
Micaela Previatti, que é aluna do sétimo ano da Escola Básica Herondina Medeiros Zeferino, foi uma das criadoras do aplicativo Save Ocean. Aos 12 anos, a adolescente conta que a ferramenta une pessoas que têm a intenção de limpar as praias.
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— O aplicativo junta pessoas para formarem mutirões e irem nas praias para retirar o lixo, e tem a indicação para separar os recicláveis e os não-recicláveis. Também têm informações sobre o clima, a quantidade de lixo retirada e a localização de outras praias — explica Micaela.
A estudante, que entrou no projeto sem ser usuária ativa de ferramentas ligadas à tecnologia, se encantou pela área e hoje afirma que não quer mais sair desse meio.
— Eu estou pensando em, no futuro, ser programadora. Eu gostei dessa ideia de programar, criar aplicativos, saber o que funciona por trás do aplicativo, saber os códigos que fazem o botão funcionar. De todas as pessoas que eu conheço, são poucas que querem saber como funciona. Bastante gente quer só usar os aplicativos, mas eu prefiro ficar por trás do aplicativo — relata.

Maria Eduarda Jacinto, de 12 anos, também era uma das componentes do grupo. Ela é aluna da Escola Básica Municipal Donícia Maria da Costa, no bairro Saco Grande, e quando pensava em carreira, a menina acreditava que seria policial. Mas, depois dos conteúdos vistos durante o projeto, as pretenções mudaram um pouco.
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— Entre as minhas amigas, a maioria gosta mais de futebol e artes, não de tecnologia. Quando eu era menor, pensava em ser policial, mas agora acho que vou fazer alguma coisa na tecnologia mesmo. Se não der na tecnologia, pode ser no futebol — afirma Maria Eduarda.
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Sobre os principais desafios e surpresas do mundo da tecnologia, Maria Eduarda conta que imaginava alguns processos de criação como algo bem distante da sua realidade, mas foi surpreendida quando percebeu que ela poderia executar essas etapas.
— O meu maior aprendizado na criação do aplicativo foi fazer a logo. Para criar a logo, eu pensava que tinha de ser alguma marca famosa, de alta validade. Quando estava fazendo, eu pensei: “Nossa, dá para criar aqui uma logo de aplicativo!” — conta a adolescente.

A pegagoga e especialista em informática na educação, Giselle Araújo, foi quem apresentou as iniciativas para Júlia Sena, em 2017. A professora explica que esses projetos contribuem para desmistificar a área da tecnologia como sendo um setor só para meninos.
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— As meninas têm oportunidades de descobrir seus talentos nesta área e, assim, se forma um grande grupo de apoio e de conexões que com certeza mudarão o ecossistema. O programa dura três meses para a criação do aplicativo, mas nós mantemos contato e, quando surgem oportunidades, nós estamos ali para chamar as meninas. Elas podem, podem muito transformar pela tecnologia. E essa transformação está sendo vista aos poucos porque as “Júlias” vão se multiplicando — pontua Giselle Araújo.
Incentivos e porta de entrada gratuita
Uma das iniciativas que existem em Florianópolis e visam a aproximação de crianças e adolescentes ao mercado da tecnologia é o App’s Só Para Meninas. O projeto organizado pelo Comitê para Democratização da Informática (CPDI) ensina meninas de oito a 14 anos a desenvolverem aplicativos e usarem ferramentas úteis para a formação das adolescentes.
— Não se discute a importância da informática, da tecnologia e da internet no nosso mundo. O nosso objetivo com esses projetos, começando com meninas a partir de oito anos de idade, é que elas comecem a ter um contato direto com uma área que vai ser imprescindível — explica Heitor Blum, diretor executivo do CPDI.
O projeto que ensinou cerca de 110 meninas no ano passado teve Andressa Tiecher como uma das alunas. A jovem de 14 anos, que estuda na Escola Básica Municipal João Gonçalves Pinheiro, participou da programação só para meninas e se inscreveu ainda em outros cursos relacionados ao tema.
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— O App’s Só Para Meninas eu fiz esse ano entre janeiro e março. A gente começou do básico, como criar e-mail, aprendemos sobre canva e depois fomos para a parte de aplicativos. Cada um desenvolve um aplicativo e a professora também cria um outro app junto com a gente — conta.
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Quando questionada sobre o sentimento em ter finalizado os módulos do curso, Andressa destaca que há uma mistura de percepções.
— Eu fico muito orgulhosa por ter conseguido fazer esses cursos e ter me formado, mas ao mesmo tempo fico triste porque poderia ter mais gente, principalmente meninas. Em uma turma com mais ou menos 20 pessoas, só tinham eu e mais duas meninas — afirma a adolescente.
Espaços a serem ocupados
Segundo dados do Tech Report 2021, elaborado pela Associação Catarinense de Tecnologia (Acate), Santa Catarina é o sexto estado brasileiro que mais concentra empreendedores no setor da tecnologia e, em Florianópolis, essa indústria movimenta R$ 8,5 bilhões.
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Em 2020, o número de empreendedoras no setor em Santa Catarina era de 22,8% e em 2019, esse número ficou em 24,8%. A quantidade mostra que ainda há espaços que podem ser ocupados e, quanto antes as meninas foram inseridas nestes locais, melhor será a visão delas sobre as oportunidades que a área oferece.
— Esse cenário vem mudando, muito pelo fato de a gente começar a falar do tema, inspirar e aos pouquinhos a mudança vem. Claro que não é do dia para a noite, mas precisamos reforçar essas iniciativas — diz Betina Zanetti Ramos, diretora da GT Mulheres Acate.
Considerando a consolidação desses espaços para as mulheres, Betina ressalta ainda que o acolhimento às meninas é um fator fundamental para que elas se interessem em desenvolver as habilidades ligadas à ciência e tecnologia.
— Muitas vezes as meninas não são tão atraídas para esse meio porque elas não conhecem. A gente sabe que muitas vezes as mulheres empreendem por necessidade e não oportunidade. Então, nós precisamos mostrar para as meninas que elas podem estar em qualquer lugar, mas para que elas estejam em qualquer lugar, elas precisam se sentir acolhidas — ressalta a diretora.
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