Jurema Ribeiro, de 84 anos, foi retirada do apartamento em que morava, em São Leopoldo, com a água da enchente batendo no pescoço. Não deu tempo de pegar nada, saiu apenas com a roupa do corpo. Ela ficou por mais de uma semana dormindo no chão em um abrigo. A filha, Marlene Ribeiro, de 58 anos, mora em Florianópolis, capital de Santa Catarina, a 466 quilômetros de distância, e há semanas vive a angústia de estar longe e não poder auxiliar a família em meio a tragédia.
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— Bate um sentimento de desespero de não poder fazer nada por eles. É de amargar — diz.
Em Triunfo, a psicóloga Andréia Vasques está há dias cercada por um cenário de destruição e tristeza. A maioria das famílias da região teve a casa alagada e não conseguiu salvar um item sequer. A casa da profissional está coberta por lama e chegou a ficar embaixo d’água na primeira semana das chuvas. Ela também perdeu o consultório que havia inaugurado há quatro dias, em 27 de abril. Sem espaço para trabalhar, ela tem feito atendimento às vítimas no espaço de uma capela montado para receber doações.
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A mesma situação se repete com o bombeiro gaúcho Luiz Jobim Rosa, de 44 anos, que atua em resgates desde o início da catástrofe e teve a casa inundada. Ele chegou a ficar nove dias sem acesso à cidade onde mora, São Leopoldo, mas se manteve nos plantões. Foram centenas de pessoas salvas em cenários chocantes e difíceis de serem apagados da memória.
Os três têm algo em comum: para além dos danos materiais, de forma direta ou indireta, foram expostos a eventos traumáticos que podem deixar marcas. Profissionais da área da psicologia, ouvidos pelo NSC Total, dizem que sentimentos como insegurança, medo, estado de choque e incerteza do futuro são comuns entre os afetados e destacam a importância do acompanhamento psicológico.
Além disso, citam a necessidade da empatia no acolhimento dessas vítimas e dão dicas de como abordar a situação sem que haja uma nova exposição e se reviva o trauma.
Familiar de vítimas da tragédia vive dias de angústia
A mãe de Marlene Ribeiro foi resgatada do apartamento, em São Leopoldo, pouco depois da meia-noite de sexta-feira, 4 de maio. A idosa dormia quando foi acordada com gotas caindo da janela, que rompeu em questão de minutos e fez com que a água tomasse conta do lugar.
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O irmão e a cunhada, que vivem na mesma cidade, além da filha e do genro, que moram em Cachoeirinha (a 26 Km de São Leopoldo) também foram afetados e ainda estão com água dentro de casa, cerca de três semanas após a trágica madrugada. Todos foram levados para abrigos.
A mãe, o irmão e a cunhada foram para o mesmo local e passaram mais de uma semana até conseguirem um apartamento de um quarto emprestado de um conhecido. A mais de 460 quilômetros de distância, Marlene quase não larga o celular e troca mensagens com a família para se atualizar da situação. Todos os dias recebe imagens que aumentam o sentimento de impotência. Mas, apesar da preocupação com todos, o que mais lhe deixa angustiada é a condição vivida pela mãe, dona Jurema.
— Naquele dia [4 de maio], a mãe começou a gritar e vieram socorrer ela, pela janela. Ela saiu só com a roupa de dormir, perdeu tudo. Nem calcinha, nem pijama, nenhuma peça de roupa ela tinha pra vestir. Foi horrível. Só após quatro dias que ela ganhou dez litros de água para tomar um banho e uma muda de roupa. Mantimentos e água estavam difíceis, não chegavam até eles — relata.
Marlene tem um salão de beleza em Florianópolis e conta que tem triplicado os horários de trabalho para conseguir ajudar os familiares financeiramente. O que mais lhe corta o coração é saber que a mãe, de 84 anos, precisou dormir no chão puro, já que o abrigo para onde foi levada não estava equipado e não tinha colchões para todos.
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— Não adianta eu ir pra lá agora, pra ficar mais uma pessoa na rua. Então estou esperando baixar [a água] pra ir limpar o apartamento para minha mãe, também o da minha irmã, que a água chegou no segundo piso. Bate um sentimento de desespero de não poder fazer nada pela minha família. É de amargar, não tenho palavras. Fico pensando em comprar uma cama nova para minha mãe. Vou trabalhar dobrado para poder ajudar ela, uma senhora de 84 anos — desabafa.
Psicóloga teve consultório recém-inaugurado destruído
A psicóloga Andréia Vasques havia inaugurado há quatro dias o novo consultório quando foi surpreendida pela enchente, no início de maio. O nível da água bateu dois metros. Móveis, decoração, livros e equipamentos foram destruídos pela chuva. O que restou foram apenas entulhos distribuídos em meio a muita lama.
Além de lidar com o próprio infortúnio e dos pais, que também ficaram sem casa, a profissional tem atuado em uma comunidade no bairro Olaria, em Triunfo, auxiliando na arrecadação de doações, acolhimento e, quando necessário, atendimento psicológico. A maioria das famílias no local perdeu tudo e precisou ser levada para abrigos.
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— É um desafio, mas estar vivendo o mesmo fica mais fácil de entender o que as outras pessoas estão sentindo, pois por mais empatia que se possa ter, não temos a capacidade de sentir a dor do outro — reflete.
A psicóloga destaca que, mesmo com o alerta da Defesa Civil, ninguém imaginava o tamanho da catástrofe. Alguns, ainda esperançosos, levantaram do chão tudo o que podiam, mas em alguns locais a água ultrapassou os dois metros.
Nos abrigos que vai, encontra pessoas desesperadas, tristes, com sentimento de impotência, crises de ansiedade e até quadros depressivos.
— Atendi um caso de uma mulher que não foi atingida diretamente pela enchente, mas estava abrigando 15 pessoas e diversos animais. Me ligou dizendo que estava passando mal, com um ataque de pânico. Depois da crise conseguiu chorar e desabafar, disse não estar aguentando tanta tristeza e caos que estava em sua casa e por toda a cidade. Ela precisou ser medicada e segue em tratamento — relata.
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Andréia tem auxiliado vítimas das enchentes desde os primeiros dias do ocorrido. Nas próximas semanas, deve integrar a equipe da prefeitura de Triunfo e atender grupos de pessoas que vivem em comunidades mais atingidas. Ela destaca que, mesmo em meio a muita tristeza, a solidariedade ganha espaço.
— Comecei a acolher as pessoas que encontrava, dar um abraço, ouvir, procurar saber o que mais precisavam naqueles momentos e buscar ajuda, assim fomos nos unindo a essa grande rede de apoio que se formou.
Bombeiro que perdeu tudo permanece atuando em resgates
Adultos, crianças e animais disputando espaço pelos corredores do hospital. Pacientes deitados no chão alagado pela enchente e pessoas que se abrigavam na unidade para fugir da chuva. A situação foi vivenciada pelo bombeiro gaúcho Luiz Jobim Rosa, 44 anos, quando atuou no resgate das vítimas internadas no Hospital de Pronto Socorro (HPS) de Canoas. As cenas daquele 3 de maio não saem da cabeça do profissional, que atua há mais de 20 anos na área. Atualmente, é operador de suporte médico na companhia de operações aéreas do Batalhão de Busca e Salvamento do Corpo de Bombeiros Militar do RS.
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Jobim mora em São Leopoldo, mas desde que começaram as enchentes mal parava no imóvel. Um dia antes de participar do resgate no HPS, a casa dele foi tomada pela água. No intervalo do trabalho, foi avisado por uma vizinha, que fez o resgate do cachorro. Mesmo tendo perdido tudo, o socorrista permaneceu trabalhando.
— Estava tudo muito confuso. Os funcionários [do hospital] estavam muito assustados querendo ir embora. Tivemos que quebrar a parede e fazer rapel para descer os pacientes pela escada. Acho que foi a cena mais complexa e que mais me impactou, porque já eram pessoas em comorbidade, e não tinham nem como fazer por si mesmos — afirma o bombeiro.
Jobim ficou sem acesso à casa por nove dias devido às cheias do Rio dos Sinos, que interrompeu a passagem para o interior de São Leopoldo. Neste meio-tempo, sabendo que os filhos estavam bem e em segurança na casa da mãe das crianças, dedicou todas as forças nos trabalhos de resgate.
Somente no hospital de Canoas, Jobim conta que mais de 300 pessoas foram resgatadas, seja de helicóptero ou barco. Durante todo o trabalho, prestou apoio a centenas de vítimas, em mais de 17 horas diárias dedicadas aos salvamentos. O que o mantém firme é o sentimento de empatia.
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— O serviço não para. Seguimos trabalhando motivados por muitas vítimas que precisam de ajuda. Tu separa as coisas, porque no momento que estou trabalhando não consigo ficar pensando na minha casa, tento até não ficar lembrando, e me coloco no lugar das pessoas que a gente está ajudando naquele momento — diz.
Acompanhamento psicológico para socorristas
O socorrista gaúcho Luiz Jobim Rosa afirma que já havia atuado em uma situação bem semelhante no ano passado, quando fez diversos resgates a vítimas em cima de telhados durante as enchentes na região do Vale do Taquari.
O profissional conta que os bombeiros recebem treinamento psicofísico durante os cursos, a fim de prepará-los para lidar com possíveis traumas ocasionados pelas cenas a que são expostos.
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— A gente não tenta se ausentar daquela sensação, mas cria uma blindagem, uma barreira para não levar aquilo com a gente, pra poder seguir trabalhando. Até porque são muitas situações ruins e péssimas que tu presencia, de crianças a idosos e animais, e isso tudo mexe com o psicológico. A gente tem que ter uma certa estrutura psicológica pra aguentar tudo, por isso é importante um acompanhamento posterior a essas tragédias — destaca.
Em Santa Catarina, o Corpo de Bombeiros conta com duas frentes de trabalho no âmbito psicológico. O primeiro contato acontece na escola militar, onde o agente tem acesso a palestras de saúde mental e também com temáticas como ansiedade e gerenciamento de estresse, para que tenha um melhor entendimento sobre as possíveis reações que pode vivenciar e para estar preparado tanto para se autogerenciar quanto para gerar acolhimento a vítimas em situações extremas.
A segunda frente é o Programa de Prevenção de Estresse Pós-Traumático (Progesp), composto por uma equipe de 18 psicólogos militares (policiais e bombeiros) distribuídos por todo o Estado. Jean Abilio Silva, chefe do Serviço de Psicologia da Polícia Militar e do Corpo de Bombeiros em SC, explica que socorristas que atuam em ocorrências extremas, como a do Rio Grande do Sul, podem solicitar atendimento para que seja monitorado e acompanhado por profissionais da área.
Esse acompanhamento, segundo o tenente Jean, envolve ações de acolhimento, avaliação, monitoramento e verificação dos sintomas, além da intensidade e a frequência com que eles se apresentam na rotina desse militar.
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— Dentro do primeiro mês pós-evento traumático, é comum que esses bombeiros apresentem alguns sintomas, como ansiedade, insônia, dificuldade de concentração, e esse acompanhamento ocorre justamente para evitar que tais sintomas se prolonguem e causem outros prejuízos. Se for detectado que há a necessidade de um acompanhamento prolongado, esse bombeiro deve realizar um tratamento clínico de psicoterapia, que poderá ocorrer dentro ou fora da corporação — explica.
Além disso, a corporação conta também com apoio de associações parceiras que subsidiam, sob requisição, tratamentos particulares caso o militar não tenha plano de saúde.
Insegurança, medo e incerteza do futuro
Para além de perdas materiais e danos físicos, catástrofes como a do Rio Grande do Sul têm um impacto significativo na saúde mental das pessoas envolvidas no desastre, sejam elas diretamente afetadas ou familiares das vítimas.
Rafaela de Rosso é psicóloga e tem feito atendimentos gratuitos às vítimas das enchentes do Rio Grande do Sul. Ela destaca que os principais impactos psicológicos relacionados a eventos traumáticos são sentimentos de medo, ansiedade, insegurança, angústia, tristeza e sensação de desesperança devido à incerteza do futuro.
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— Também pode desenvolver lembranças intrusivas ou involuntárias, sonhos angustiantes, sensação de que o evento se repetirá, medo em momentos que observa previsão do tempo com chuva, mesmo que seja de baixa intensidade. A vítima tende a evitar situações que se assemelham ao episódio. No caso das enchentes, tudo que lembre o ocorrido, como andar de barco e sair de casa quando estiver chovendo — exemplifica.
A especialista destaca que, inicialmente, nem sempre os primeiros socorros psicológicos são feitos por profissionais da área e, por isso, ressalta a importância de não fazer perguntas que façam com que a vítima reviva o episódio traumático. Devido às circunstâncias, qualquer pessoa apta, de preferência que tenha cursos para situações emergenciais, pode acolher os atingidos, diz.
— Em geral são importantes perguntas como: “Estou aqui para lhe auxiliar no que for necessário. Neste momento, em que eu posso ser útil para você?”. Mantenha a escuta ativa e de forma empática, olhando nos olhos. Após este acolhimento é avaliado se a vítima precisa de acompanhamento psicológico e ou psiquiátrico — destaca.
O que não falar para vítimas de desastres
No Rio Grande do Sul, a maioria das cidades afetadas conta com grupos voluntários de profissionais qualificados para acompanhamento da saúde mental. A psicóloga Rafaela alerta que, a respeito do suporte social e comunitário, há a necessidade de um cuidado redobrado no momento de apoio às vítimas para que seus sentimentos ou dores não sejam invalidados ou minimizados.
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Do ponto de vista sistêmico, sua especialidade, reforça que cada pessoa possui um histórico de vida e um nível de resiliência para cada situação que devem ser levados em conta.
— Não devem ser compartilhados imagens ou relatos próximo ou diretamente para a vítima, para que não ocorra a exposição repetitiva ao evento traumático, que faz com que aumente o sofrimento psicológico da mesma. É importante que não utilizem falas como “Pelo menos você está vivo”, pois este tipo de fala minimiza o sofrimento da vítima. E, neste momento, todos querem ser ouvidos de acordo com a sua perda ou prejuízo, seja físico, mental ou material — orienta a profissional.
Rafaela salienta que todos os medos e inseguranças das vítimas são comuns logo após vivenciarem uma situação traumática. No entanto, cita que a maioria dos afetados tende a reduzir esses comportamentos automaticamente e até excluí-los definitivamente com o passar dos meses, sem auxílio psicológico ou psiquiátrico. Por isso, diz ser importante “não criar patologias onde não existem”.
— Após pelo menos um mês de estabilidade, volta a sua realidade, pode ser analisado se a vítima precisa ou não de acompanhamento profissional e se foi desencadeado o Transtorno de Estresse Pós-Traumático (TEPT). De modo geral em casos indiretos ou emergenciais, o acompanhamento psicológico irá auxiliar para ressignificar pensamentos disfuncionais, baixar o nível de ansiedade e auxiliar a fortalecer a resiliência do paciente, através de uma escuta ativa profissional em ambiente acolhedor, com ética e sigilo — reforça.
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