“Menstrua, vai para a escola, abaixa a blusa. Tá marcando?” São as mais variadas técnicas e códigos entre as meninas para garantir que a calça não fique manchada durante a menstruação. Muitos adolescentes são de famílias com recursos escassos para compra de absorvente, e uma iniciativa do governo de Santa Catarina tenta amenizar essa situação, distribuindo o produto para cerca de 64 mil estudantes da rede estadual.

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Na escola Edith Gama Ramos, em Capoeiras, parte continental de Florianópolis, 84 meninas recebem o recurso, que também chega às suas mães e irmãs. A medida ajuda as famílias que muitas vezes não podem gastar R$ 20 do orçamento para higiene menstrual.

Emanuelle* e Larissa*, ambas com 11 anos, estão entre as meninas que receberam pacotes de absorvente na última quinta-feira (26). Elas menstruaram pela primeira vez aos 10 anos e lembram do dia.

— Eu estava brincando com os meus primos na rua, aí eu fui no banheiro e vi, gritei pra minha vó. Não tinha certeza se era [menstruação], mostrei pra ela, ela viu, confirmou, e me disse: “Parabéns”. Fui no quarto e mostrei pra minha mãe, que me disse parabéns também — descreve Emanuelle.

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— Quando eu fiquei mocinha eu meio que já sabia. Tava em casa, e quando vi no banheiro, chamei minha mãe, que não ficou surpresa, ela disse que já tinha visto no vaso o outro dia. Então a gente já estava esperando — conta Larissa.

Quando questionadas como seria se a primeira menstruação tivesse acontecido na escola, ambas riram.

— Desespero, né? — disse Emanuelle.

Emanuelle e Larissa, que estão no sexto ano do ensino fundamental, ajudam as professoras a abrir caminho para meninas que precisam de ajuda com a higiene menstrual — um direito reconhecido pela Organização das Nações Unidas (ONU), que criou o Dia Internacional da Menstruação, celebrado neste sábado (28). De acordo com o levantamento do Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef) com o Fundo de População das Nações Unidas (UNFPA), quase 90% das meninas passarão de três a sete anos da sua vida escolar menstruando.

No colégio, reuniões sobre o tema começaram antes mesmo da primeira entrega de absorventes. Durante a educação física, as meninas da turma eram chamadas para a conversa.

— Quando soubemos do projeto [de distribuição de absorventes] fizemos uma ação com as meninas: “Meninas, isso é natural, é biológico”. Depois, algumas meninas quiseram conversar com as colegas, então elas entravam nas salas e conversavam com elas sobre recebimento — explicou a diretora da escola, Marcia Zanon Benetti.

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Ela conta que, antes mesmo de existir esse projeto, a escola, que tem 58 anos, deixava uma caixa com absorventes, mantida pelo próprio corpo pedagógico, para distribuir para as meninas

— A gente sempre teve nosso estoque de absorventes, uma caixinha com alguns. Então esse programa veio ao encontro de um anseio social que algumas pessoas tinham dentro da própria escola. Pessoas que tinham dificuldade na aquisição dos absorventes — explicou a diretora.

O programa do governo de Santa Catarina abrange cerca de 64 mil estudantes da rede estadual de educação. Para receber os absorventes, é preciso integrar famílias inscritas no Cadastro Único para Programas Sociais (CadÚnico), do governo federal.

A Escola Edith Gama Ramos tem turmas do 1° ao 9° ano do ensino fundamental. Ao todo, são 680 estudantes — 84 recebem os absorventes, o que representa de 24% das cerca 340 meninas. Conforme Márcia, no momento, o colégio não tem nenhum estudante que é homem trans.

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Novas perspectivas

Larissa e Emanuelle são descritas pela diretora como exemplo da geração que encara a menstruação com nova perspectiva. Lado a lado, elas contam sobre como é para a maioria das garotas que recebem os absorventes. 

— Elas ficam com vergonha só de pegar [o pacote] e entrar na sala. Elas ficaram escondendo [embaixo da camiseta]. A gente acha bem tranquilo entrar com o absorvente na mão, porque toda menina um dia vai menstruar, né? — diz Emanuelle.

As meninas compartilham ainda algumas técnicas adotadas pelas colegas durante o período de menstruação.

— Elas ficam baixando a blusa — diz Larissa, enquanto puxa a camiseta para baixo mostrando como é feito. — E perguntam ainda se tá manchada [a calça], se [o absorvente] tá marcando. — completa.

Como funciona a distribuição dos absorventes

Todo final do mês, as meninas são chamadas em outra sala para recebem os pacotes. Para evitar contrangimento, a gestora escolar explica que uma sacola é dada para as meninas que não se sentem confortáveis em atravessar o pátio com os absorventes em mãos.

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De acordo com a diretora, dois pacotes são entregues por estudante, mesmo para aquelas que ainda não menstruaram. Isso porque os absorventes têm ajudado não apenas as alunas, como também outras pessoas da família.

— A gente percebe o alívio que foi no orçamento familiar o recebimento desses dois pacotinhos mensais. Essa ação começou no mês passado e agora em maio é que de fato a gente percebeu esse retorno, porque, no lançamento do programa, ainda existia um receio. Agora as famílias já estão vindo pra escola perguntar: já veio o absorvente do mês? — conta Márcia.

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A gestora divide que famílias que tiveram um mês difícil financeiramente já pediram ajuda para escola. Uma delas recebeu três pacotes que sobraram — a família tem cinco mulheres.

Saúde íntima

Uma pesquisa da marca de cuidado íntimo, Always, apontou que mais de uma em cada quatro jovens (29%) não tem dinheiro para comprar produtos higiênicos para o período menstrual em algum momento de suas vidas. Além disso, uma a quatro meninas já faltou a aula por não poder comprar absorventes.

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De acordo com a diretora, apesar da escola não registrar evasões em função da pobreza menstrual, foi percebido que, muitas vezes, as alunas passavam o dia com o mesmo absorvente. Isso pela falta do produto ou desconhecimento sobre a higiene. 

Segundo a psicóloga Ursula Maschette, que é especialista em Educação e Promoção da Saúde com foco em higiene menstrual, a discussão sobre pobreza menstrual ultrapassa a necessidade do absorvente, e se estende para a estrutura que é necessária para a saúde íntima da mulher.

— Precisamos falar sobre a política de acesso aos produtos de higiene, banheiro, água, papel higiênico. A gente precisa saber que se não se fala e educa sobre menstruação, mesmo oferecendo dentro do espaço escolar, a gente tá subentendendo que essa pessoa sabe o que fazer, e muitas vezes não sabe — ressalta.

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De acordo o relatório da Unicef com a UNFPA, em Santa Catarina, um pouco mais de 35% das estudantes do 9° ano consideravam ser “parcialmente atendidas” no que diz respeito a condições básicas para higiene menstrual nas escolas. Isso significa banheiros com lavatórios, papel higiênico e sabão, pias em quantidade e qualidade suficiente para o uso.

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O relatório utilizou como argumento a Pesquisa Nacional de Saúde de 2013 realizada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), em parceria com a Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz). O levantamento apontou que quase 70% das escolas de do Sul do Brasil possuíam banheiros com condições mínimas para banheiro na escola. No gráfico, a região é a segunda com melhores condições do país e aparece quase empatada com a parte Sudeste.

Os mitos e verdades sobre a menstruação

Ursula contribui para o programa de Dignidade Íntima do Estado de São Paulo e, desde a especialização, se deparou com meninas que menstruaram ainda crianças, e aos 10 anos, pararam de brincar. A especialista alerta para a importância de a educação esclarecer mitos sobre a menstruação.

— A menstruação passa mensagens culturais muito fortes: você menstrua e vira mocinha. A gente já coloca um marco bem decisivo, você não é mais uma menina, você é uma mulher. É narrativa perigosa, porque você expõe essas meninas ao amadurecimento precoce. Essas meninas não sabiam o que o sangue era, mas tinham bem claro que a partir daquele momento ela não era mais uma criança. São mitos superperigosos.

A pesquisadora explica que retirar a conversa sobre a menstruação da “ordem do privado”, de um assunto que só deve ser tratado dentro do ciclo familiar, é um dos passos para assegurar a dignidade para pessoas que menstruam.

De acordo com a Secretaria da Educação de Santa Catarina, o programa de distribuição de absorventes inclui o projeto “Segue o fluxo! Absorva essa ideia”, que instrui o corpo pedagógico sobre o ciclo e pobreza menstrual. Conforme a pasta, a proposta é trabalhar com a comunidade escolar o entendimento da menstruação como um processo natural do corpo, para desmistificar tabus socialmente construídos em torno do tema.

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Ursula relembrou algumas ideais ligadas à menstruação e pontuou perspectivas que podem alterá-las:

— Você menstrua e ainda é criança, você menstrua, mas não está pronta pra engravidar. O fato de você ser cíclica e o seu corpo estar ali preparando pra ovular diz outras coisas. Teu corpo está produzindo hormônios superimportantes pra sua saúde. São narrativas que falam como essas pessoas “tem que” se comportar.

Para além do absorvente descartável

De acordo com Ursula, parte da promoção da saúde que envolve os programas de dignidade menstrual, é mostrar outras alternativas ao absorvente.

— Nem toda a pessoa que menstrua se adapta com absorventes descartáveis por exemplo. É preciso ter uma certa autonomia pra entender o que faz sentido pra meu corpo e ciclo. Essa discussão a gente nem começou a fazer, e tá tudo certo porque a gente tem que começar de algum lugar. — reforça a especialista.

Ela explica que discutir sobre o assunto dá repertório para a escolha de qual é o melhor absorvente. E o papo parece ter chegado às escolas, de acordo com Márcia, nas reuniões com estudantes, além da história da menstruação, foram abordadas outras formas de passar o período menstrual, como o uso de coletores.

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> Riscos de usar produtos inadequados durante a menstruação

Uma empresa de Florianópolis de produtos para uso durante a menstruação, a Korui, criou a linha “primeiros ciclos”, voltada para quem teve a menarca, ou seja, a primeira menstruação. Os produtos são calcinhas absorventes, absorventes reutilizáveis e bolsas impermeáveis, utilizadas para armazenar as calcinhas usadas até chegar em casa.

Ensinar sobre maneiras sustentáveis e higiênicas de utilizar o absorvente já causou impacto na escola de Florianópolis, em um mês de programa.

— É incrível a diferença. A gente ensinou as meninas a enrolar o absorvente usado antes de jogar no lixo, e a não jogar dentro do vaso. Sentimos a diferença nos banheiros, a gente tá falando do cheiro, tá falando de um descarte mais higiênico. São coisas simples, mas que precisam ser faladas. — fala a gestora escolar.

*Nomes fictícios para proteger a identididade das crianças.

Ouça o podcast “Naqueles dias”

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