É fácil encontrar frases fortes e de impacto quando se faz entrevistas para uma matéria a respeito da pandemia do novo coronavírus – várias seriam boas candidatas para abrir um texto sobre o assunto. Mas talvez a mais importante dessa vez venha da infectologista Sabrina Sabino, de Blumenau:
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– Nós vemos, no dia a dia, pessoas que chegam ao hospital com sintomas leves, dois dias depois estão na ventilação mecânica, e no dia seguinte vão a óbito. – ela declara, sem meias palavras. – A medida do nosso governador foi muito correta em fazer rapidamente o isolamento social: é por isso que Santa Catarina ainda tem um número relativamente baixo de casos, quando comparada a outros estados brasileiros. Mas não podemos desfazer isso. Eu sei que as pessoas se preocupam com emprego, economia. Mas nós não estamos falando de uma besteira. Imagine um familiar seu começar a sentir febre, tosse seca, e morrer dois ou três dias depois?
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Sabrina, que é professora de medicina na FURB e atua nos três principais hospitais de Blumenau, se diz incomodada justamente por ter percebido que, desde a última segunda-feira (30), o movimento nas ruas aumentou.
– Isso torna nosso trabalho mais difícil – afirma, referindo-se aos profissionais da área da saúde. – A gente já sabe que, nas próximas semanas, o número de infectados deve aumentar por causa disso. As pessoas precisam levar a sério as recomendações das organizações de saúde, e ficar em casa. Se não fizermos o isolamento, o pico de infectados vai ser tão grande que não teremos equipamento e nem recursos humanos para atender todo mundo. Quem vai cuidar dos pacientes se os médicos e enfermeiros estiverem todos doentes? Não podemos deixar que a situação brasileira chegue nem perto da catástrofe que aconteceu em outros países.
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A especialista é representante de um grande grupo de pessoas que, pela natureza de sua profissão ou ocupação, não pode se manter em isolamento – não apenas profissionais de saúde fazem parte desse grupo, mas também farmacêuticos, garis, funcionários de supermercados e postos de gasolina, entregadores. E também quem atua na área da assistência social, que, pela natureza de seu trabalho, está diariamente em contato direto com dezenas, às vezes centenas de pessoas. Pessoas que, nesse momento de crise, precisam mais do que nunca desses profissionais.
Maria Cláudia Goulart da Silva, psicóloga por formação e Secretária de Assistência Social da prefeitura de Florianópolis, ressalta que pessoas em situação de rua não conseguem seguir as mais básicas orientações de prevenção ao COVID-19: não podem se isolar socialmente, porque não têm casas; não podem se higienizar corretamente, porque não têm acesso direto ou constante a itens tão básicos quanto água e sabão. Na verdade, elas não podem nem se informar adequadamente – e informação é essencial para resolver o problema.
– No início dessa crise, nós abordávamos as pessoas em situação de rua, e muitas vezes elas sequer sabiam da gravidade do que está acontecendo, porque têm pouco acesso à informação – conta Maria Cláudia. – Na última semana, nós montamos um projetor com caixa de som lá na Passarela, e, todas as manhãs, ligamos o noticiário, para que elas possam se informar, ter real noção do que está acontecendo no mundo.
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A "passarela" a que ela se refere é a Passarela da Cidadania, na Passarela do Samba Nego Quiridu, em Florianópolis, que segue atendendo pessoas em situação de rua, mesmo durante a quarentena – mas, com a publicação dos decretos municipal e estadual a respeito das medidas de combate à disseminação do coronavírus na capital, teve práticas e procedimentos adaptados para respeitar as novas normas.
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Cerca de 250 pessoas são atendidas a cada dia no local, onde são servidas refeições e também há vagas para pernoite. Lá, foram disponibilizados banheiros e lavatórios móveis para as mãos, além de álcool gel. Todas as ações ofertadas são realizadas respeitando o distanciamento recomendado entre uma pessoa e outra e seguindo as demais orientações da Vigilância em Saúde do Município e da Organização Mundial da Saúde (OMS).

A prefeitura instalou lavatórios móveis também em outros sete pontos da cidade, para que as pessoas possam fazer a higienização das mãos. As demandas provocadas pela pandemia, porém, não se resumem à necessidade de higiene e isolamento social.
– Nós temos um benefício-transporte para pessoas que estão em situação de rua poderem voltar para seu município de origem – explica a Secretária. – Só que agora os ônibus não estão circulando, e elas não tem como voltar; justamente em um momento em que tanta gente se sente tensa, ansiosa, querendo resgatar vínculos, estar perto da família. Tem um pai que tem mandado emails para a gente todos os dias: ele está procurando o filho, que tem esquizofrenia, e nesse momento está mais preocupado do que já estaria normalmente.
Também há pessoas que nunca precisaram de auxílio da Secretaria de Assistência Social, e agora se veem obrigadas a solicitar benefícios. É o caso, por exemplo, de trabalhadores que não têm nenhum tipo de poupança, mas, com suas atividades, conseguem, a cada dia, o dinheiro necessário para pagar pela própria alimentação e a da família – mas que agora estão sem trabalhar, e precisam de assistência para poder comprar comida.
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Desde o início da quarentena, ninguém entra e nem sai dos abrigos continuados administrados pela Secretaria, como o abrigo de mulheres vítimas de violência e os abrigos de idosos.
– As equipes fazem videoconferências com os familiares de quem está nesses abrigos, para diminuir a sensação de solidão, de ansiedade – diz Maria Cláudia. – Conseguimos também uma parceria com um hotel: o empresário disponibilizou quartos a preço de custo, e já temos nove pessoas em isolamento lá, em quartos individuais.
Assim como a médica Sabrina Sabino, Maria Cláudia sente diariamente o peso de se expor à contaminação pelo coronavírus. Ela conta que, no primeiro dia em que seu filho de nove anos de idade não teve aula, em função das medidas de isolamento adotadas em Santa Catarina, o menino perguntou por que sua mãe também não ficaria em casa.
– Pelas cenas que viu na TV, ele estava com muito medo. – ela relata. – Ele me perguntava: "Mãe, por que é que você vai? Você quer morrer?", e eu dizia que eu precisava ir, que nada ia acontecer. Mas eu chorava no carro, saindo de casa. Com medo, mesmo.
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Sabrina concorda que o aspecto emocional e psicológico é o que mais pesa neste momento:
– Eu não durmo direito. – relata a infectologista. – Acordo no meio da madrugada e fico uma hora acordada, pensando em Covid, treinamentos, pacientes… Está sendo bem difícil, acho que para todos os profissionais da saúde. Eu tenho marido, uma filha de um ano e cinco meses. Tenho muito medo de transmitir a doença para eles.
Maria Cláudia Goulart da Silva diz que, ao longo dos dias, foi ressignificando, para si mesma e para o filho, sua saída diária de casa a caminho do trabalho:
– Eu mostro a ele fotos das pessoas que ajudamos, mostro que os efeitos do coronavírus podem ser ainda piores se as pessoas não se ajudarem, mostro todas as medidas de segurança que adotamos: luvas, máscara, o distanciamento entre as pessoas – diz. – E a situação foi mudando: agora eu sinto que ele tem orgulho do meu trabalho.
Ela também diz que se sente fortalecida com as manifestações de apoio e a ajuda que os assistentes sociais vêm recebendo:
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– Para cada mensagem de pedido de ajuda que recebemos, recebemos outra oferecendo apoio – relata Maria Cláudia. – São pessoas que dizem que estão orando por nós e pela nossa família, que se oferecem como voluntários, que querem doar roupas, lençóis. O número de atendimentos na Passarela dobrou, mas o número de voluntários também aumentou muito. E isso é surpreendente, porque são pessoas que poderiam estar em casa, mas se voluntariam para estar lá, se colocando em risco pelos outros.
– É uma situação surreal, jamais vivida, acho que jamais imaginada – ela continua. – O mundo tem sofrido bastante, e não há planejamento nem recurso que dê conta. É diferente de uma enchente, um incêndio; que são situações de calamidade, mas são localizadas: o que está acontecendo hoje é generalizado, na cidade, no estado, no país e no mundo.
A infectologista Sabrina Sabino volta a lembrar da importância do isolamento social ao comentar que a maior preocupação dos pacientes que recebem o diagnóstico de coronavírus nem costuma ser a própria saúde – e, sim, a possibilidade de já ter contaminado outras pessoas.
– Muitos reagem dizendo coisas do tipo "meu Deus, eu fui numa festa não sei onde", "meu Deus, eu tenho filhos pequenos" – conta. – E há pacientes que chegam tão rápido ao estado crítico que nem têm tempo de compreender a gravidade do problema antes de ser entubados. É tudo muito atípico. Nada do que está acontecendo é normal.
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