No vaivém frenético na entrada do Hospital Santa Catarina, no Centro de Blumenau, poucos reparam, mas a data está ali. Talhada no concreto escuro do vigésimo primeiro degrau da escadaria, a frase diz: “Enchente, julho de 1983”. É um lembrete de até onde a água chegou naquela que entrou para a história como a mais longa inundação em Santa Catarina. Foram 32 dias de angústia e ruas alagadas.
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O pedido para que a marcação fosse feita partiu do médico Siegmar Starke. Aos 69 anos, ele recorda com riqueza de detalhes aquele plantão que era para ser de 24 horas, virou de cinco dias e deixou lembranças que o tempo não apaga. Era 9 de julho, um sábado, quando o nível do Rio Itajaí-Açu atingiu o pico 15,34 metros. O relógio marcava 16h e 70% da cidade ficou alagada.
Lá se vão 40 anos do início daqueles dias que mais pareciam noites em Blumenau.
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— Já no primeiro dia ficamos sem energia elétrica, sem água potável, sem telefone, medicamentos limitados. Teve um dia que não havia comida. Saímos muitas vezes do hospital de bateira para fazer atendimentos. Outra lembrança que tenho é daquelas primeiras noites quando algumas pessoas subiram no telhado, ali na Rua Araranguá, e gritavam — recorda o cardiologista.
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A primeira marcação, indicando a altura em que a água chegou, foi o próprio médico que fez em um arbusto. Uma foto tirada por ele naqueles dias mostra o cenário que se tinha a partir do hospital. Tudo alagado até onde os olhos alcançavam. Para chegar ou sair dali, só de embarcação ou helicóptero.

Starke pessoalmente organizou a abertura de um heliponto aos fundos da unidade para receber auxílio humanitário. Foi por ali, inclusive, que chegou o então governador Esperidião Amin. O médico recorda de ajudar a erguer veículos com os soldados do 23º Batalhão de Infantaria.
— O primeiro helicóptero que desceu era do Amin, e ele perguntou o que estava faltando. Eu disse: tudo, inclusive comida. E claro os helicópteros traziam pacientes, às vezes pediam que eu fosse atender alguém, mas um que eu não esqueço trouxe comida. Era um helicóptero do governo do Rio de Janeiro, com cestas básicas e na embalagem escrito “Do Rio, com amor, Brizola”. Aí resolveu nosso problema de alimentação — comenta.

O dia em que salvou um desconhecido
Por algum tempo, conta o médico, o barulho de helicópteros o remetia à enchente de 1983. Mas apesar das lembranças duras, o cardiologista também carrega boas recordações. Antes de o hospital ficar ilhado, conseguiu salvar a vida de um homem que havia se afogado no rio. Com a vida do paciente em risco, ele e uma técnica de enfermagem colocaram os instrumentos e medicações na bateira e foram ao encontro da vítima.
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Starke fez respiração boca a boca no paciente e conseguiu reverter uma parada cardíaca.
— Nunca soube o nome dele, mas o curioso é que um dia essa técnica de enfermagem encontrou o homem no ônibus e perguntou para ele se já tinha vindo me agradecer e dar um par de sapato novo, porque o meu tinha perdido na lama, e ele disse que nunca mais queria me ver porque eu tinha colocado a minha boca na dele — conta em meio a risos tímidos.
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O médico diz que se fosse hoje, a situação seria diferente. A própria unidade de saúde estaria melhor preparada, tanto que hoje a prefeitura de Blumenau tem um plano de contingência específico para os hospitais, englobando Santa Catarina, Santo Antônio, Santa Isabel, Misericórdia e da Unimed. O secretário de Defesa Civil, Carlos Olímpio Menestrina, concorda com Starke:
— A estrutura que Blumenau tem em termos de planejamento, alertas e equipes para esse enfrentamento é totalmente diferente. Apesar de que muitas pessoas acabam relaxando nesse processo, até porque faz parte do ser humano achar que isso nunca mais vai acontecer com ele, mas o fenômeno climático vai ocorrer. A gente só não sabe dizer quando e como. Por isso insistimos tanto em ações de treinamento, revisão do nosso plano de contingência e trazer a comunidade para esse processo.
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