Uma “maluquice”. Uma tentativa de culpabilizar vítimas. Uma afronta ao código de ética da medicina e ao direito das mulheres. Assim a ginecologista Daniela Lemos Mezzomo e diversos outros profissionais da saúde do país enxergam as novas normas para o aborto em caso de estupro. O procedimento é autorizado por lei e deve ser feito em hospitais credenciados, como é o caso do Santo Antônio em Blumenau, onde Daniela trabalha.

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Com a portaria 2.282 assinada na semana passada, médicos que atenderem vítimas que buscam pelo aborto legal em caso de estupro devem notificar as autoridades policiais, oferecer à mulher a possibilidade de ver o embrião através de ultrassom e, se antes eram necessários dois profissionais para assinar um termo de aprovação do procedimento, agora são três.

— É uma tentativa de coagir… culpabilizar a mulher pelo procedimento. Criminalizá-la por não querer um filho fruto de violência. O objetivo é só esse: dificultar o acesso a esse direito. Que maluquice é essa de mostrar o feto, de quebrar o sigilo médico? — indigna-se Daniela.

Ela é coordenadora do setor de Ginecologia e Obstetrícia do Hospital Santo Antônio. A unidade é uma das quatro do estado a realizar o chamado aborto legal (em casos de violência sexual, quando representa risco de morte à mulher ou quando não há formação cerebral do feto). 

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Com os mudanças editadas na portaria, o governo federal fere um dos itens do Código de Ética Médica sobre o sigilo profissional ao exigir que o médico avise à polícia sobre o que aconteceu com a vítima.

Daniela garante que a equipe continuará a seguir o que diz o Código de Ética. Expor a vítima às autoridades policiais sem a vontade dela está fora de cogitação.

Medo de denunciar

A especialista explica que na maioria dos casos a mulher que busca o procedimento não faz boletim de ocorrência. Quando envolve menores de idade, a violência normalmente é cometida por alguém próximo, o gera ainda mais receio da família em levar a denúncia adiante. Para os médicos, a palavra da paciente basta.

— Ao contrário do que pensam, nenhuma mulher engravida e inventa que foi estuprada para conseguir abortar no hospital. Eu nunca vi isso. Quem chega é porque realmente sofreu a violência — esclarece.

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Atualmente a mulher que vai ao Hospital Santo Antônio em busca do aborto legal é direcionada ao Serviço de Atenção Integral às Pessoas em Situação de Violência Sexual (Savs), que faz os encaminhamentos à assistência social, psicólogos e exames necessários. Depois, retorna à unidade para o procedimento. Na prática, a nova portaria cria exigências que amedrontam ainda mais a vítima.

Poucos abortos por ano

Daniela não lembra quantos procedimentos já fez desde que começou a trabalhar no hospital, em 2015, mas não foram muitos. Neste ano, cerca de cinco mulheres ou jovens que foram violentadas procuraram a unidade para abortar.

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Qualquer obstetra da equipe pode fazer a interrupção da gravidez. Daniela garante que nenhum colega se recusaria a prestar esse tipo de atendimento, diferente do que aconteceu no Espírito Santo com uma menina de 10 anos. Ela teve de fazer o procedimento em outro estado após o hospital especializado negar o procedimento (relembre a história abaixo).

— Acho que a religião é usada como desculpa. No fundo quem nega esse direito é porque acredita que a vítima, de alguma forma, teve culpa. É como se a gravidez fosse a punição pelo que ela "procurou”. É machismo, não religião — analisa. 

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Acesso ao serviço

Daniela espera que a inconstitucionalidade derrube as mudanças no documento editado pelo governo federal. Enquanto isso, garante que o atendimento prestado pela equipe não mudará. Para ela, o serviço em Blumenau é eficiente, mas há pontos que precisam melhorar, como a divulgação da existência dele e a capacitação de quem lida com as vítimas, para que as abordagem sejam mais acolhedoras e estruturadas. O que não pode, para a especialista, é o que a portaria oferece: criar barreiras no acesso a um direito já conquistado para as mulheres.

Ação chega ao STF

O Supremo Tribunal Federal (STF) julgará a existência de inconstitucionalidade na portaria editada pelo governo federal. A ação foi movida nesta semana pelo Instituto Brasileiro das Organizações Sociais de Saúde (Ibross) e distribuída ao ministro Ricardo Lewandowski.

Caso da menina de 10 anos

A mudança na portaria ocorre após o caso que repercutiu em todo o país em meados de agosto. Uma criança de 10 anos engravidou após ser estuprada pelo tio no Espiríto Santo. A violência era constante e ocorria desde quando a pequena tinha seis anos.

A família só descobriu o abuso ao notar a gestação. Ao procurar um hospital de Vitória para fazer a interrupção, a equipe negou o atendimento e a menina teve de ser levada a outro estado para realizar o aborto.

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Ela também teve de se esconder no porta-malas de um carro para entrar no hospital de Recife (PE) enquanto o médico e diretor da unidade, Olimpio Moraes, atraía para o portão principal os fanáticos religiosos e políticos que se dividiam e bloqueavam todas as entradas para impedir a garota de realizar o procedimento.  

Quem divulgou o nome da menina e qual unidade faria o procedimento foi a extremista bolsonarista Sara Giromini, conhecida como Sara Winter