*Artigo por Mário Sant’Ana
Na semana passada, aos 91 anos, meu Pai morreu. Ainda não sei o que isso significa para mim. São muitas dimensões de várias grandezas que se misturam sempre que penso nele. Acho que é uma das experiências mais caleidoscópicas que já vivi. Aprendi e continuo aprendendo muito com meu Pai.
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Brincando, autointitulava-se “Primário Interrompido”, pois, aos 11 anos, logo após a morte de meu avô, teve de parar os estudos para ajudar a sustentar a família. Com apenas quatro anos de escolaridade, aos 16 anos, ingressou na Marinha do Brasil, cuja estrutura de ensino serviu de trilha para sua impressionante trajetória de superação.
Quando tive idade suficiente para minimamente entender o que meu Pai fazia, descobri que se tornara Operador de Sonar, figura importantíssima nos combates no mar, e instrutor de técnicas de ensino no CIAW (Centro de Instruções Almirante Wandenkolk), na Ilha das Enxadas, Baía da Guanabara.
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Nesse processo, aprendeu a aprender, a ensinar e a ajudar os outros a fazerem o mesmo. Sou um desses outros e compartilho aqui um episódio repleto de lições que ainda orientam minha navegação nos mares da vida.
Como somar frações
— Pai, não consigo somar essas frações. Elas têm denominadores diferentes, então não dá para só repetir o denominador.
— O que é um denominador?
— É o número de baixo da fração.
— Tem certeza?
— Sim. A professora falou.
— Não apenas repita o que ouve! Pegue o dicionário.
— Dicionário?!?! É Matemática, Pai!
Quando vi que não haveria arrego, trouxe o segundo dos cinco volumes do Caldas Aulete, que vieram com a Enciclopédia Delta Larousse, que meus pais se endividaram para comprar para os filhos.
— “Denominador: que ou o que dá o nome.” — li para ele, do mesmo tomo de seis centímetros de espessura que acabo de, mais uma vez, consultar.
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— Que fração é esta? — perguntou apontando para a primeira parcela da soma que eu não conseguia fazer.
— Um quinto.
— Por quê?
— O denominador é cinco.
Depois de fazermos a mesma análise de cada item do cálculo em questão, meu Pai repetiu a primeira pergunta que fizera quando lhe pedi socorro.
— O que é um denominador?
— É o número que dá nome à fração — afirmei.
Olhando para mim com orgulho, pegou dois lápis e continuou com as perguntas:
— Quanto é um lápis mais um lápis?
— Dois lápis.
— Quanto é uma borracha mais uma borracha?
— Duas borrachas —respondi impaciente, mas curioso para saber aonde tudo aquilo levaria.
— Quanto é um lápis mais uma borracha?
— Não dá.
— Claro que dá. Pense.
— Como vou somar duas coisas diferentes?!?
— Você acabou de somar e o resultado foi “duas coisas”. Você encontrou algo que dá o mesmo nome para os dois, o mesmo denominador: “coisa”. É o que chamam “denominador comum”.
Depois de me orientar ainda com perguntas a chegar ao “menor denominador comum”, o resultado passou a ser “dois itens do meu estojo”.
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Meu Pai então demonstrou com desenhos que chamar o “um quinto” de “dois décimos” não muda seu valor, apenas permite que se some à fração “um meio”, que, permanecendo do mesmo tamanho, passamos a tratar por “cinco décimos”.
Então, olhou para mim e, com brilho nos olhos, garantiu:
— Funciona com gente também.
Depois de confiar essa pérola de sabedoria ao filho de nove anos, ajudou-me a procurar nas páginas anteriores à que eu havia encontrado o problema, uma forma de resolvê-lo.
E foi assim que aprendi, em alguns minutos com meu Pai, a não simplesmente aceitar o que me dizem; que palavras têm significado e importância; que se eu me expressar de forma diferente posso me somar aos outros, sem mudar o meu valor; que as páginas anteriores podem revelar caminhos para solução de problemas; que perguntas podem ensinar mais que respostas. E, de quebra, aprendi a somar frações heterogêneas (aquelas com denominadores diferentes).
O emocionante rito de honras póstumas oferecidas pelos militares que compareceram ao funeral de meu Pai marcou essa importante virada de página nas nossas vidas. Na manhã do último domingo, Maraci, Maristela e eu despejamos no Lago Paranoá, em Brasília, as cinzas de nossos Pais: Aracy e Mário Sant’Ana.
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*Mário Sant’Ana é tradudor e intérprete, cofundador do Projeto Resgate, organização com ações para reduzir contrastes sociais, e co-idealizador do programa Think Tanks Projeto Resgate, para o desenvolvimento de habilidades de inovação intersetorial, soft skills e liderança não hierárquica. Escreve artigos para o A Notícia às terças-feiras. Contato: mario@projetoresgate.org.br
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