*Artigo por Mário Sant’Ana
No Brasil do início do século 20, o desafio era a sobrevivência e o sucesso é fácil aferir. A expectativa de vida para quem nasceu no País em 1910 era 34 anos; em 2020, passou para 76,7.
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Isso permitiu aos que vieram ao mundo nas primeiras décadas após a Segunda Guerra Mundial pensarem em vidas com mais conforto. Conseguiram o que queriam. A melhoria das condições de habitação, inclusive dos mais pobres, e a quase universalização de bens duráveis como veículos automotores, eletrodomésticos e eletrônicos atestam que o brasileiro típico hoje vive melhor, não apenas por mais tempo, que seus avós.
Desde a inauguração deste milênio, as expectativas têm se multiplicado e se intensificado. O prazer deixou de ser um extra, para ganhar o status de objetivo supremo e a autogratificação de curto prazo o caminho mais adotado para tentar alcançá-lo. Verificar o êxito desses esforços é quase impossível.
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Nesse contexto, os riscos de desapontamento são graves, como adverte o renomado arquiteto e urbanista israelense, Moshe Safdie: “Quem busca a verdade encontrará beleza; quem busca a beleza encontrará vaidade. Quem busca a ordem encontrará gratificação; quem busca gratificação ficará desapontado. Quem se considera o servo de seus semelhantes encontrará a alegria da autoexpressão; quem busca a autoexpressão cairá no poço da arrogância.”
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Com a mente em muitos ambientes virtuais e o corpo no único mundo físico que existe, os nativos desta era têm dificuldade de lidar com o fato de que, nas ruas, não conseguem ficar invisíveis simplesmente usando o mouse; que assaltantes terrenos são bem mais perigosos que os alienígenas dos jogos de computador; que gente continua existindo, mesmo quando selecionamos “Bloquear” ao lado do seu nome; que os vírus podem destruir vidas, não apenas corromper arquivos; que não dá para recorrer ao Crtl+Z quando decidimos mal; que a vida não permite backup; e que quando, sozinhos à noite, brincam de faz-de-conta em metaversos, estão, na verdade, sozinhos.
O encontro do calor de emoções intensas dos dias atuais com as superfícies frias dos fatos de sempre faz surgir uma névoa que nos impede de ver com clareza o que está à frente. Pegos pela mesma neblina, mães, pais, educadores e líderes em geral tentam fazer sentido dos mapas antigos, procuram marcos conhecidos e tateiam pelo caminho, entoando mantras absurdos, tais como: “Temos de protegê-los de tudo.”
Proteção total não é uma obrigação que uma geração tem com sua sucessora. Não é sequer possível. Se fosse, não seria desejável, como sabem os que estudam as artes marciais. Os frequentes impactos sofridos pelo corpo nos treinos e disputas causam microfraturas nos ossos que, ao se regenerarem, ficam mais fortes e memos susceptíveis a doenças. O caráter também se fortalece quando absorvemos as consequências dos golpes da vida e é por isso que não devemos embalar nossos filhos com isopor e plástico bolha quando os mandamos para a escola, quando saem para brincar ou para as atividades típicas da adolescência.
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Escolinha de futebol é bom, mas a pelada de rua ensina mais e melhor (inclusive futebol). São lições da vida, tais como: o dono da bola tem vaga garantida (mesmo que jogue mal); na formação dos times, os jogadores pouco habilidosos são os últimos escolhidos, ou ficam de fora (exceto o dono da bola); os melhores sempre jogam (mesmo se não forem os donos da bola). Como o dono da bola e o craque da rua sabem que não podem jogar sozinhos, policiam suas vantagens, ou não haverá jogo.
Esportes de contato físico demandam vigor e autocontrole; o sucesso na vida adulta, também. Os jogos sem a supervisão de adultos muitas vezes não são justos e, por isso, perfeitos para ajudar crianças e adolescentes a lidar com as dificuldades que têm hoje e para a vida imperfeita que certamente terão. Brincar de faz-de-conta da infância permite experimentações sem consequências permanentes, que podem subsidiar o indivíduo na definição de uma identidade própria e do seu papel no mundo.
Em suma, a vida é o único antídoto para as contradições de hoje.

*Mário Sant’Ana é tradudor e intérprete, cofundador do Projeto Resgate, organização com ações para reduzir contrastes sociais, e co-idealizador do programa Think Tanks Projeto Resgate, para o desenvolvimento de habilidades de inovação intersetorial, soft skills e liderança não hierárquica. Escreve artigos para o A Notícia às terças-feiras. Contato: mario@projetoresgate.org.br