A história de Maria da Penha Maia Fernandes, 71 anos, dá hoje a oportunidade há muitas mulheres de se defenderem da violência doméstica. Vítima de um relacionamento abusivo com um marido que tentou matá-la – e que a deixou paraplégica -, Maria sobreviveu e lutou para que o que aconteceu com ela não fosse enquadrado apenas nos crimes que já estavam previstos no Código Penal, mas passasse a ser considerado um crime de violência doméstica.

Continua depois da publicidade

O sofrimento dela foi reconhecido pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos da Organização dos Estados Americanos (OEA), que condenou o Brasil e fez o país mudar a legislação e dar mais atenção, e tratamento, à violência doméstica.

Em 2016 a Lei Maria da Penha faz 10 anos. Ela foi fortalecida pela lei que criou o crime de feminicídio, que completa um ano dia 9. É sobre esses avanços, e sobre o que ainda precisa mudar, que Maria da Penha fala nesta entrevista exclusiva ao Santa.

No que o Brasil avançou desde a criação da Lei Maria da Penha?

Continua depois da publicidade

Hoje todas as capitais brasileiras possuem as suas políticas públicas de atendimento à violência doméstica contra a mulher. Os grandes municípios criaram os Centros de Referência da Mulher, a Delegacia da Mulher, a Casa Abrigo e os juizados. Outra coisa importante é o papel da imprensa, porque no momento em que você coloca que esse município tem aparelhamento para atender, você encoraja as mulheres.

E onde é preciso avançar?

Precisa haver comprometimento do gestor público dos médios e pequenos municípios para criar condições da lei funcionar. Os médios municípios que já têm uma defensoria pública que abraça essa causa através do núcleo de gênero são um exemplo, mas tudo isso ainda precisa chegar na mulher mais desassistida.

Por que mecanismos como esses são importantes?

Porque é um crime que a população precisa ter conhecimento. Homens são assassinados por pessoas com quem não têm parentesco, intimidade. As estatísticas mostram que você não vê mulher morrendo como os homens, você vê mulher morrendo dentro de casa, que é o local onde ela deveria ser protegida e por quem deveria protegê-la, e isso é muito grave. Quando o homem pratica essa violência contra a mulher, a pena dele tem que ser diferente sim, porque ele conhece a estrutura da família, conhece a mulher, sabe das fraquezas dela.

Continua depois da publicidade

A mulher brasileira está tomando mais consciência da gravidade da violência doméstica? Está buscando formas de se defender?

Se ela encontra essa estrutura no seu município ela vai procurar ajuda. Agora, se ela mora lá num município distante, a lei existe só no papel. Muitas vezes essa mulher pode até ser assassinada sabendo que existe a lei, mas não sabe onde buscar ajuda. No momento que ela diz: “Eu vou lhe pôr na lei Maria da Penha!”, é nessa hora que ela é calada pra sempre.

Como a senhora vê a assistência às mulheres vítimas de violência no Brasil?

A gente não tem dados em relação a isso, o que nós temos é que mais e mais pessoas estão denunciando. E se elas estão denunciando é porque acreditam nas instituições e têm exemplo de quem conseguiu sair: uma amiga, uma parente que saiu daquela situação. Isso encoraja outras mulheres a denunciar.

Continua depois da publicidade

Por que mesmo com a lei cada vez mais rígida os casos de violência contra mulher continuam crescendo, principalmente contra negras e pobres?

Eu acho que esse número cresce porque as mulheres já se inteiraram sobre a lei. Quando a mulher sabe que tem um caminho para sair daquela situação, ela vai atrás, e aí as estatísticas de denúncias aumentam.

Os movimentos feministas vêm ganhando força e uma das bandeiras é a defesa da mulher contra a violência. Como vê esse crescimento e a forma como as mulheres lutam pelos seus direitos?

Continua depois da publicidade

Eu acho nota mil! É essencial que esse conhecimento atinja cada vez mais mulheres com o pensamento de que é possível sair de uma situação. Muitas vezes o agressor é muito perigoso, e não é fácil pela cultura dessa mulher, que foi criada para silenciar a violência, porque isso é “coisa normal dos casais”.

Como falar com meninas sobre violência contra a mulher e assédio, já que os casos podem começar ainda na infância?

Tem a questão da educação familiar, onde a mãe foi vítima e a filha que sofre a violência está repetindo o que a mãe sofreu. Mas o Estado também pode interferir na hora em que inclui nos planos pedagógicos a questão do direito da mulher e conscientiza os jovens de que eles têm que respeitar suas namoradas e as jovens de que elas têm que denunciar se forem vítimas de violência por esses jovens.

Continua depois da publicidade

Em muitos planos municipais de educação questões relativas às discussões de gênero foram retiradas. Discuti-las nas escolas pode resultar, em médio e longo prazo, na redução do machismo e consequente redução da violência contra a mulher?

Eu acho que os movimentos sociais podem estar esquecendo esse retrocesso que aconteceu e devem estar na linha de frente, falando sobre a violência de gênero, conscientizando esses jovens dentro da sala de aula. E eu acho que vai chegar o dia que isso vai ser derrubado. É um absurdo num momento de tanto avanço social, da implementação de uma lei que veio dar visibilidade para a questão da violência doméstica e mostrar os caminhos para isso diminuir, ter esse retrocesso baseado no machismo.

Algumas vítimas de violência não percebem ou têm visão distorcida sobre relacionamentos abusivos, especialmente quando não há violência física. Como pessoas próximas podem intervir?

Continua depois da publicidade

Não tem aquela história de que em briga de marido e mulher ninguém mete a colher? A Lei Maria da Penha é totalmente contra esse pensamento. Você não precisa criar um problema com o agressor, não precisa se expor, mas pode conversar com a agredida, mostrar os mecanismos que existem para ela sair dessa situação.

Recentemente houve casos de feminicídio em que as vítimas já tinham feito boletins de ocorrência e em um deles o então ex-marido deveria manter-se afastado por decisão judicial. Percebe-se que a politica pública de proteção à mulher avançou na punição dos crimes, mas muito pouco na prevenção efetiva. O que precisa mudar para que esse tipo de história não se repita?

Infelizmente, quando acontece um caso desse as outras mulheres recuam para denunciar, porque é um exemplo negativo. Eu acho que a imprensa tem que estar presente sempre, denunciando a falha do Estado, que é muito grave.

Continua depois da publicidade

Há casos de homens com histórico de agressão a diferentes mulheres. Como evitar a reincidência?

O que eu tenho conhecimento é de que nas delegacias é muito raro retirar a denúncia, porque a mulher já é conscientizada de que ela não pode, só na Justiça. Então é o centro de referência da mulher que vai orientar sobre tudo isso, que vai dar segurança para ela. Está sendo criada em vários municípios a ronda da lei Maria da Penha, um patrulhamento feito com uma parceria entre o juizado, a delegacia e a guarda municipal. O juizado entrega para a ronda as mulheres que estão sendo protegidas e elas vão ser visitadas. Isso dá segurança para a mulher e faz com que o agressor se afaste. No momento que isso acontece a mulher se sente fortalecida porque tem o apoio do Estado e o agressor pensa duas vezes antes de tentar se reaproximar.

Um dos motivos que fazem as mulheres retornar ao convívio de um agressor é a dependência financeira ou emocional. Como sair desse círculo?

Eu vou de novo para o centro de referência da mulher, que é onde ela tem condição de discutir como ela poderá se sustentar, a ela e aos seus filhos, ter condições de achar um caminho.

Continua depois da publicidade

É possível acabar com a violência contra a mulher?

Se esse enfrentamento for trabalhado com a responsabilidade que merece e se a educação for colocada, com certeza sim. Os casos não vão zerar, porque existe o problema dos doentes mentais e outras coisas, mas as mulheres vão estar mais conscientes e vão começar a ver com mais rapidez a situação de perigo.