Carlos é um pai chamado para reconhecer o corpo da filha no IML. Embora todas as provas mostrem que o cadáver se trata de fato de Fernanda, o homem não reconhece a filha, com quem convivia diariamente. A menina é morena, enquanto Fernanda era loira; a menina tem uma tatuagem no ombro, enquanto Fernanda morria de medo de agulhas. Perturbado, Carlos vai atrás de respostas: quer saber o que aconteceu, e quem pode ter matado Fernanda. No processo, descobre toda uma vida paralela da filha, que ele desconhecia – e passa a viver um inferno particular muito mais doloroso do que aquele que encararia se simplesmente decidisse aceitar o luto.
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Essa é a trama de As Almas Que Dançam No Escuro, novo longa do cineasta Marcos DeBrito, diretor do premiado Condado Macabro, de 2015. O filme é um dos destaques da 12ª edição do Cinefantasy, maior e mais reconhecido festival de cinema fantástico do Brasil, que neste ano acontece de forma híbrida, com sessões online. O evento começou no último dia 9 e segue até este domingo, dia 19 de setembro. No total, a edição deste ano do Cinefantasy conta com 119 filmes, produzidos em 34 diferentes países.
– Nós filmamos em novembro e dezembro de 2019, quase começando a pandemia – conta Marcos sobre o projeto. – Eu precisava filmar como se fosse inverno: tivemos que fazer toda uma fotografia com cara de inverno, em pleno fim de ano; os atores morrendo de calor com aquelas roupas compridas. (risos) Esperávamos dias nublados para gravar as externas. Mas funcionou bem. Entre janeiro e março eu organizei todo o material, ainda na produtora; e, a partir de abril, trouxe os computadores e fiz toda a montagem em casa. Então eu até dei sorte com o cronograma; a pandemia acabou não nos atrasando.
– Seguramos o lançamento: a previsão inicial era lançar comercialmente o filme no meio deste ano, mas a pandemia mudou completamente como se consome cinema no Brasil – prossegue o diretor. – Os filmes não estavam fazendo quase nada de bilheteria. Então decidimos segurar seis meses, e estudar como fazer o lançamento, ver se o mercado vai se reaquecer. Se não acontecer, lançamos direto em streaming.
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A melhor profissão do mundo – mas nem sempre
Marcos DeBrito nasceu em Florianópolis, onde morou até os 18 anos. Desde pequeno, já se interessava pelo audiovisual: em brincadeiras com o irmão e os primos, fazia pequenos filmes com uma câmera emprestada por um tio. Marcos foi embora de Florianópolis justamente porque, na época, a cidade ainda não contava com uma faculdade de cinema: com a possibilidade de passar a viver com o pai, que morava em São Paulo (SP), o futuro cineasta foi estudar na FAAP (Faculdade Armando Alvares Penteado), e acabou estabelecendo a carreira na capital paulista.
Se estudar cinema ainda é uma decisão encarada com desconfiança hoje em dia, no início dos anos 2000, a opção pela carreira era vista quase que como loucura.
– Era muito difícil, até porque os meios de produção eram muito mais caros – explica Marcos. – A gente ainda estava caminhando para entrar no cinema digital; tudo era feito em película. Um rolo de 35 milímetros custava uns R$ 500 reais, durava quatro minutos, e não era regravável. Se você não tinha outro trabalho ou uma família que te ajudasse, trabalhar com cinema era um risco muito, muito alto. Hoje, a gente tem até celulares capazes de fazer um longa-metragem. As câmeras profissionais são muito mais baratas. Então fazer cinema no Brasil, hoje, não é tão loucura.
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– Você inclusive abre um leque de profissões muito grande: pode trabalhar com publicidade, pode trabalhar para os serviços de streaming – ele lista. – Antigamente, se você dizia que fazia cinema, te perguntavam em seguida qual era o seu trabalho de verdade. (risos) Ainda não é o cenário ideal: barateou o custo dos materiais de produção; mas nós, profissionais, continuamos ganhando muito pouco. Mas melhorou bastante.
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– Acho que o único momento glamouroso que o cinema proporciona para a gente são as estreias, os festivais – ele ri, a respeito da ideia que o público por vezes tem de que a vida de um cineasta é cheia de luxos. – Tem festival que paga tudo pra você: passagens, hospedagem, passeios. Quando o cinema dá certo, é a melhor profissão do mundo. Mas precisa de muito trabalho para ela dar certo. Às vezes são anos de insistência. Eu já vendi carro pra usar o dinheiro pra fazer filme. Mas não me arrependo. A satisfação de ver uma obra que você criou sendo assistida e debatida por pessoas às vezes no mundo inteiro é um pagamento emocional que vale a pena. Mesmo que nem sempre bote comida na mesa. (risos)
Ainda no meio da faculdade, porém, Marcos recebeu um sinal e tanto de que sua carreira poderia dar certo: no quarto semestre, ele fez um curta chamado Vídeo Sobre Tela, que ganhou o Prêmio Especial do Júri no Festival de Gramado – segundo o diretor, foi o momento em que ele considerou sua carreira como iniciada “de verdade”. Após a formatura, Marcos continuou trabalhando principalmente com curtas-metragens; até que, em 2012, surgiu a oportunidade de fazer um longa. Foi quando o cineasta resolveu abraçar de vez o terror, gênero com o qual trabalhou nos seus três longas-metragens lançados até agora.
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O sobrenatural como inspiração
– Meus filmes sempre tiveram um pé no gênero; com mortes, bastante suspense – Marcos descreve. – Eu sempre assisti muito terror. Quando era criança, eu esperava meus pais irem dormir para poder ligar a TV e ver aqueles filmes que passavam de madrugada. E depois não dormia, porque ficava morrendo de medo. (risos) Eu sempre tive muito medo do escuro, também. Dormi com a luz acesa até os 18 anos. E eu sinto que, quando trabalha com arte, a gente trabalha com confronto: sempre queremos confrontar aquilo de que não gostamos; ou criticar uma situação vigente. Quando criança, deitado no meu quarto, eu ouvia sons que não sabia de onde vinham; e minha cabeça infantil criava imagens, especulações do que poderia ser aquilo. Hoje me considero um porta-voz de coisas que um dia podem ter falado comigo… Mesmo que em imaginação.
– Algumas das coisas que eu via e ouvia não pareciam ser fruto da imaginação – ele continua. – Eu via coisas, de fato. Olhava pra um local e não era só uma sombra; tinha uma criatura ali. Mas será que era real? Nunca vou saber. Decidi que eu precisava explorar isso melhor, e comecei a estudar, ler sobre o sobrenatural, que é um assunto que me atrai muito. Hoje eu não tenho mais medo, então eu confronto as coisas. Por exemplo: se hoje vejo algo estranho, eu vou lá e às vezes descubro algo físico, uma explicação para aquilo. Parece que a magia se perde um pouco. Quando criança, eu virava as costas, fechava os olhos. E aquilo ficava na minha cabeça.
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Insisto: hoje em dia, Marcos acredita ou não no sobrenatural, então?
– Ah, a gente não tem explicação pra tudo, né? – ele pondera. – A gente fala sobre o sobrenatural como algo irreal porque ainda não tem explicação para ele, mas um dia a gente pode vir a ter essa explicação. Tem muita coisa que a ciência ainda não explicou. Então eu não descarto nada. Tem umas coisas que são complicadas de atribuir só à imaginação.
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Ele narra um exemplo:
– Quando eu ainda morava em Floripa, tinha um quadro do [Charles] Chaplin em um dos quartos da casa, e numa noite eu dormi nesse quarto. E eu vi o quadro do Chaplin se mexendo. Fiquei morrendo de medo. Nunca contei essa história pra ninguém. Aí, um dia, eu levei meus filhos para conhecer Florianópolis, e nós ficamos nessa casa, onde meus tios moram hoje em dia. E ficamos no quarto do quadro do Chaplin. Eu olhava pro quadro durante a noite e ele estava lá, tranquilo. Nada aconteceu, dormi super bem. E no dia seguinte minha filha veio me perguntar por que é que o quadro do Chaplin ficava se mexendo à noite. Eu nunca tinha contado aquela história para ela.
– Um dia peguei minha filha parada olhando para o corredor e perguntei o que estava acontecendo ele – Marcos conta. – E ela apontou e disse “quem é esse menino?”. E eu perguntei “que menino, filha?”, e ela respondeu “o menino que mora nas paredes”. E ainda reclamou que não gostava quando ele brincava com os brinquedos dela. (risos) Então eu vou aproveitando essas coisas nas minhas histórias, de um jeito romantizado.
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Roteiros transformados em literatura
As histórias de Marcos não são contadas só no cinema: ele também tem sete livros publicados, e diz que costuma ser mais reconhecido como escritor do que como cineasta.
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– Mas todos os livros que escrevi, eu escrevi primeiro como roteiro – comenta. – Tenho um raciocínio muito mais rápido como roteirista, pelo fato de ter estudado isso, me formado nisso. Quando entendi que o cinema é difícil de fazer e que talvez nem todas as minhas histórias possam chegar às telas, eu pensei “poxa, eu não quero que essas histórias fiquem na gaveta.” À Sombra da Lua, meu primeiro livro, que saiu pela Rocco, é a adaptação do primeiro roteiro que eu escrevi, e que era muito caro para ser transformado em filme. E, quando vi que o mercado editorial gostava de mim, decidi adaptar outros roteiros.
– O cinema ainda é a minha prioridade: quando ele me chama, eu vou. É difícil; você tem que gastar muito dinheiro; se envolver com várias pessoas. Ele me maltrata, mas é uma paixão inexplicável – ele ri. – A literatura está lá sempre me esperando. Se eu tenho um roteiro, e o cinema não me quis… Eu uso na literatura, e vende. O Almas Que Dançam no Escuro virou o livro Palavras Interrompidas, que é uma adaptação super fiel do roteiro. Claro que são formas muito diferentes de escrever, né? Uma é no passado, outra é no presente; em uma você explora muito os pensamentos dos personagens, a outra é baseada em diálogos…

Quanto ao que assiste hoje em dia dentro do gênero terror, Marcos DeBrito diz que consome de tudo – desde os longas de James Wan, como Invocação do Mal e Annabelle; a opções menos convencionais, como o recente A Lenda do Cavaleiro Verde, inspirado em uma lenda arturiana, e que, segundo Marcos, é o seu filme favorito de 2021 até aqui.
– Eu acho que nós, realizadores, tendemos sim a gostar mais dessas coisas chamadas de “cult”, porque, como estamos acostumados a produzir, nós já identificamos, no terror comercial, onde o susto vai aparecer – argumenta. – São fórmulas, fica previsível. Então eu não fico tenso durante o filme, não sinto medo. Um filme tipo Hereditário mexe mais comigo.
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– Esses filmes, tipo A Bruxa, estão sendo chamados de “pós-horror”, mas eu discordo do termo – o diretor explica. – São filmes mais lentos, mais dramáticos; que, na verdade, se aproximam bastante dos primeiros filmes de terror que foram feitos na história. Eles não dão susto; eles são incômodos. Acho que todo mundo deveria dar mais atenção para esses filmes. Nos meus trabalhos, eu gosto de tentar combinar o cult e o comercial. Não quero fazer o extremo do comercial, mas também não quero fazer um filme que ninguém vai assistir. Gosto de criar um equilíbrio.
Futuro promissor para o terror
Marcos DeBrito diz que vê, hoje, uma maior valorização do cinema de terror; mas que esse processo vem acontecendo aos poucos.
– O gênero de horror é feito para incomodar: a principal faceta do terror é mostrar o mal que existe em todo ser humano, e isso incomoda, faz com que esses filmes sempre sejam deixados meio de lado – aponta. – Mas aos poucos as pessoas vêm entendendo que o terror também é sim uma expressão artística; tanto que a gente viu A Forma da Água vencendo o Oscar, O Labirinto do Fauno sendo indicado a vários prêmios. Acho que existe um futuro muito promissor para o terror, não só comercialmente, mas também em premiações.
– É interessante a gente ter festivais que apostem nos gêneros de fantasia, de terror, de suspense, que costumam ser meio renegados nos festivais tradicionais – ele fala, sobre o Cinefantasy. – Tentando fazer terror no Brasil, a gente compete com um James Wan da vida, e é uma competição injusta. Eles têm milhões investidos, um mercado gigante. Então é importantíssimo termos festivais focados nesse mercado.
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– Nós tivemos um boom de exibições de filmes de terror brasileiros no segundo semestre de 2019, uma safra que veio do fundo setorial, que ainda estava em voga um tempo antes – Marcos fala, sobre a produção de filmes de terror no país. – Hoje isso diminuiu de novo. Já está bem difícil acessar verbas com filmes tradicionais, dramas, comédias; imagina com algo que sempre foi considerado um subgênero? E aí você tem, por exemplo, empresas que não querem patrocinar seu filme porque não querem associar a logo delas a sangue e tripas. (risos)
Como outros trabalhadores da área da cultura no Brasil, Marcos DeBrito também sente que as dificuldades para arrecadação de verbas aumentaram nos últimos anos.
– Não podemos abolir o incentivo à cultura, porque isso traz retorno também – argumenta. – Essa história de que o dinheiro não volta para o governo é uma inverdade. É só para minar a cultura, mesmo. Há umas tendências no atual governo… Se eles não gostam de algo, vão encontrar dificuldades para aprovar. E isso não acontecia antes. Eu também não era muito fã dos governos anteriores, mas não existia esse tipo de censura, sabe? As aprovações eram feitas exclusivamente por norma técnica. Hoje não é mais assim. As pessoas começaram a ter medo de incluir determinadas coisas em suas obras e perder patrocínios. E isso é bem complicado.
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