Observe a foto: ela mostra um ônibus estacionado por poucos minutos em um suave aclive. O veículo está em perfeitas condições, mas o motorista, como invariavelmente todos os seus colegas, não pensa duas vezes em pôr um calço na roda para que, na remota hipótese de uma falha no freio, o veículo não desça a ladeira. Infelizmente, a imagem não é do Brasil, mas do Japão, um país onde mesmo fatalidades desencadeadas por terremotos e tsunamis são minoradas pela obsessão com a segurança.

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Em geografia e atitude, o Brasil está no extremo oposto. O coquetel fatal que desemboca em tragédias como a de Santa Maria se alimenta de quatro ingredientes infortunadamente corriqueiros entre brasileiros com obrigação de zelar pela segurança de outros. A soma da irresponsabilidade e da permissividade com a impunidade e o individualismo reflete um país, com raras exceções à regra, refratário à disciplina de fazer da segurança a primeira prioridade quando se organiza qualquer atividade, como agem japoneses e povos em outro estágio da civilização.

No Brasil, é corrente terceirizar toda a culpa na inação dos poderes públicos, mas a origem dos acidentes reside muitas vezes na incúria do cidadão que administra, de alguma forma, situações de risco. O motorista que ultrapassa em local sem visibilidade na estrada, torcendo para que não venha um carro em sentido contrário, está a dois segundos de matar a sua família e a de outros. Não há fatalidade nenhuma aí, como não há azar em um pitbull que dilacera uma criança ou no barraco mantido em área irregular soterrado pela lama na chuvarada. Existe é uma propensão nacional para desdenhar da morte à espreita.

A permissividade e a impunidade são primas-irmãs da irresponsabilidade. No Brasil, não raro quem enquadra irresponsáveis é alcunhado de autoritário. Até agora, não se conheciam manifestações pelo fechamento de arapucas travestidas de boates, mas sim protestos contra as raríssimas interdições. Ou seja, a pressão pública costuma caminhar pelo afrouxamento – seja pela natural rejeição brasileira a rigor e controle, seja pelo coitadismo atiçado por ativistas que impele autoridades a consentir com gente habitando encostas que desabarão nas próximas chuvas.

Por fim, há o individualismo, traço ocidental exacerbado no Brasil, no qual a vontade individual se sobrepõe ao direito coletivo, e que abrange desde o sujeito inconveniente que põe o som a todo o volume, desprezando os vizinhos, até o extremo de quem suborna ou se deixa subornar. No individualismo está também o germe da obtenção da vantagem a qualquer preço que contamina a vida em sociedade e desenvolve a perversa noção de que investir em segurança é um mal desnecessário.

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As mortes de Santa Maria são irreparáveis. Mas que, pela memória das vítimas, o Brasil mude agora e transforme irresponsáveis e permissivos que deveriam garantir a segurança de outros em criminosos e párias sociais. Ou, para nosso desalento, seguiremos noticiando ainda muitas outras boates Kiss.

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