A terceira Maratona Cultural de Florianópolis nem havia ultrapassado a linha de chegada, no domingo, e já superava as edições anteriores na geração de barulho. Não se trata do silêncio moralmente imposto ao Centro da cidade quebrado pela orquestra de baterias (ao menos 25) regida por uma banda de metal em frente à Catedral Metropolitana e a volta do samba ao Bar do Noel. A etapa mais ruidosa do evento, que quer se firmar como a principal data do calendário de aniversário da Capital, amplificou debates antes, durante e ecoará depois.
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Avessa a grita nos bastidores, a cidade respondeu à blitze de espetáculos gratuitos – quase 240 – e ainda no sábado, segundo dia, a organização já contava com superação do recorde de 120 mil participantes da Maratona do ano passado. Na mesma noite, no show performático e incendiário da cantora Karina Buhr, na Lagoa da Conceição, a própria brindou o repertório com uma pérola que soou fina ironia: a canção Ciranda Incentivo. Diz que “eu vou fazer uma ciranda/pra botar o disco/ na Lei de Incentivo à Cultura”. O requinte está no refrão: “boia no mar e é de graça/de graça”.
Pois foi justamente na questão do benefício (R$ 900 mil) concedido pelo governo do Estado, por meio do Funcultural, à Maratona deste ano que se criou uma celeuma com diversos grupos artísticos, principalmente no cerne do teatro, um dos pilares do projeto.
Na verdade, um ato contínuo ao veto imposto ao local de exibição do espetáculo Kassandra, que acabou por se retirar da programação. Com ele, outros seis grupos, segundo a organização (oito pelas contas da Federação Catarinense de Teatro), e oito espetáculos abandonaram a grade – e todos substituídos. Os protestos veementes pelas redes sociais, e a curiosa iniciativa dos “coelhos de troia” espalhados pela cidade pouco impactou na disposição do público, mais disposto a aproveitar a boia lançada ao mar.
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Estreante na Maratona, o Teatro Ademir Rosa, no Centro Integrado de Cultura (CIC) lotou nas duas noites – a primeira com a Camerata de Florianópolis e a segunda com a montagem A Vida Como Ela É, de Nelson Rodrigues, do grupo Teatro Sim, Por Que Não?! (outra curiosa analogia ao caso Kassandra: uma porque o autor foi um dos dramaturgos censurados pelo conteúdo “moralmente inaceitável” de algumas de suas obras e outra pelo questionamento que denomina o grupo catarinense que se manteve na programação). No Teatro Álvaro de Carvalho, as filas faziam volta ao prédio e, a cada espetáculo, os ingressos esgotavam-se em menos de meia-hora. Situação que alastrou-se pelo Teatro da Ubro e a Casa das Máquinas, esta na Lagoa da Conceição.
O Museu Cruz e Sousa, também no Centro, recebeu exposições, recitais e também um público jamais visto em um mês: mais de 600 pessoas entre a manhã e o início da tarde do sábado. A Fundação Badesc abriu uma janela para a exibição de filmes de arte e também contabilizou casa cheia durante todo o período. O desativado Terminal Urbano de Florianópolis recebeu um palco por onde passaram bandas de rock – e foi o único ponto em local aberto onde o público foi submetido à revista para entrar. No lado continental, a banda Dazaranha arregimentava mais de 10 mil pessoas no Parque de Coqueiros.
Mas a Maratona não se supera nas suas deficiências já conhecidas: organização e desorientação na distribuição de ingressos nos espetáculos de abertura, ausência de filas preferenciais para idosos e portadores de necessidades especiais e a vinculação política com os seus principais patrocinadores, como a Secretaria de Estado do Turismo, Cultura e Esportes. O prefeito de Florianópolis, Cesar Souza Júnior, o grande “mecenas” da Maratona foi pouco visto, mas a prefeitura é co-realizadora com a Harmônica Arte e Entretenimento.
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Embora parceiro, o município falhou ao voltar atrás na intenção de fazer o sistema de transporte público operar com horário e linhas especiais. Para piorar, a Secretaria de Transportes Urbanos e Terminais estabeleceu o cronograma de feriado, dificultando ainda mais o deslocamento do público entre os 42 pontos de atividades espalhados também pelos bairros e no Continente.
O apelo popular ainda segue como o trunfo da Maratona Cultural, que enfrentará pela frente uma série de obstáculos, principalmente políticos, financeiros e artísticos, até a edição futura. Terá que ter fôlego. Como atenta turista espertamente comenta ao folhear a programação do festival, durante os shows na Escadaria do Rosário:
– Gratuito não é, moço. Isso sai do seu bolso.
Nem todos estão dispostos a abraçar a boia facilmente.
Pontos a destacar na Maratona
– Abertura com o CIC lotado na sexta-feira. Estreia do Teatro Ademir Rosa, com lotação nas duas noites em que operou.
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– O irreverente protesto da Ocupação Coelho de Troia, que se alastrou por boa parte dos eventos da Maratona.
– A curiosa orquestra de baterias no largo da Catedral: quase 30 bateristas, incluindo crianças e meninas, atenderam à convocação da banda de metal Stormental pelas redes sociais e armaram um barulhento recital roqueiro na tarde do sábado. We Will Rock You, do Queen foi a síntese da sacada
– A volta do samba no Bar do Noel. Exceção aberta para a Maratona, mas que poderá se tornar rotineira se moradores e comerciantes da Travessa Ratcliff chegarem a um acordo sobre a música ao vivo no local
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– Ainda que abalada pela série de desistências de espetáculos e pelos protestos contra a censura à peça Kassandra, a agenda teatral da Maratona se manteve vigorosa e disputada. Resultado foram sessões com lotação máxima, filas nos teatros (como o TAC) e ingressos esgotados em minutos.
– Escadaria do Rosário, Parque de Coqueiros, Terminal Urbano de Florianópolis, Célula Cultural e a Lagoa da Conceição foram os principais centros de reverberação da agenda musical do festival.
– A cantora Karina Buhr entrou na programação da Maratona no fechamento da agenda e foi a rainha da noite do sábado, com um show incendiário e burlesco ao lado do guitarrista Edgar Scandurra, na Lagoa da Conceição. Precisa voltar.
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