A ansiedade virou contemplação. O nervosismo, admiração. O medo de altura, superado pela beleza do que os olhos viam pela primeira vez. Mar, morros, construções, a cidade em movimento. E, diante de si, a imponência das quase 5 mil toneladas de aço da maior ponte pênsil do Brasil. Era muita coisa para assistir. Sentir. Por isso mesmo a emoção. E quanta emoção!
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— É muito lindo! Que vista — exclamava Salete Carpes, de 41 anos, que na semana do aniversário de Florianópolis pisou pela primeira vez no principal símbolo da cidade em que nasceu: a Ponte Hercílio Luz.
Do alto do cartão-postal, a manezinha do bairro Carianos, no sul da Ilha, pôde ver de outro ângulo a cidade – da qual tanto se orgulha – e que completa 346 anos neste sábado. Ela gostou. Fitou, por longo tempo, as baías norte e sul. À Beira-Mar continental, dedicou elogios de quem esteve poucas vezes do lado de lá da Ilha de SC. Olhou tudo para não esquecer nada.
– Quero voltar quando a ponte ficar pronta. Mas vou aproveitar bastante hoje, porque não sei quando vou poder estar aqui de novo – disse Salete, levada a convite da reportagem para um passeio na ponte em obras na manhã da última quarta-feira.
Até chegar o dia do encontro, algumas circunstâncias separaram a auxiliar de cozinha do cartão-postal. A primeira, a criação em um sítio, no que era à época uma área rural da cidade. A segunda, o trabalho desde nova na roça da família, plantando e cuidando dos animais. Por última, a interdição em definitivo da Ponte Hercílio Luz para o tráfego de veículos e pessoas, em 1991, quando ela tinha 14 anos.
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– O pai não deixava muito a gente sair de casa. A gente ficava mais no Carianos. Trabalhávamos com o pai, vendendo o leite, alimentando as vacas, cavalos, porcos, galinhas… Era outro tempo na cidade – recorda.
Os anos passaram, a Hercílio Luz seguia fechada, e Salete crescia. Deslocava-se mais seguido para o Centro. Observava, de longe, o cartão-postal, em especial nas vezes que transitava pelas pontes Pedro Ivo e Colombo Salles. Pensava:
– Um dia eu vou dar uma voltinha lá – prometia.
"Dívida" paga com a Velha Senhora
Anos depois, já casada com o atual marido e pai de dois de seus três filhos, Salete mudou-se para o Pântano do Sul, mais distante do Centro. E a “dívida” com a ponte de 92 anos seguia.
A “Velha Senhora” por sua vez, pagava pela “ineficiência” estatal exposta na dificuldade em restaurar este patrimônio histórico, artístico e arquitetônico de Florianópolis e SC. Apesar de tudo, a longa espera de Salete chegou ao fim. Ela esteve, andou, pisou na Ponte Hercílio Luz. Para milhares de outras pessoas, manezinhos ou não, esse dia ainda está distante – embora já tenha estado bem mais longe.
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"Meu Deus, é muito alto", repetia Salete
Nem o desconforto por estar tão alto – a 30 metros acima do mar – impediu Salete de caminhar convicta até o início do vão central. Ela observava o asfalto e a água lá embaixo pelos vãos entre as estruturas de madeira da passarela e de aço inoxidável da futura pista de rolamento, mas não se intimidava.
Repetia a expressão “meu Deus, meu Deus” a todo instante. Só olhava para frente. Perguntava, aos servidores do Deinfra e à reportagem:
– Você não tem medo de altura?
Ainda em dúvida, repetia aos trabalhadores da obra Marcos Rogério de Souza e Samuel Tito Inácio, enfaticamente:
– Está seguro isso aqui?
– Sim – ouviu do técnico em segurança do trabalho Marcos.
Interessada na obra, queria saber se a estrutura, quando a reforma for concluída, será capaz de suportar o intenso trânsito de veículos pesados, já que uma das possibilidades de uso da estrutura futuramente pode ser o escoamento dos ônibus do sistema transporte coletivo que saem e entram na Ilha de Santa Catarina. Ouviu dos funcionários que sim.
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“A gente coloca carreta aqui em cima”, disse o técnico ambiental Samuel.
Detalhes não escaparam ao olhar de uma Salete por demais atenta. Ela questionava se a estrutura enferrujada da ponte ficaria “desse jeito”, por exemplo. Teve como resposta “que tudo que está enferrujado vai sair”.
Surpresa ao saber como a Velha Senhora ficará
Sobre a pista de rolamento, em aço, Salete comentou que nunca tinha visto nada igual em sua vida. Também surpreendeu-se em saber que é exatamente assim que a ponte ficará. No meio da futura pista, olhava para os lados, onde funcionarão a passarela de pedestres de um lado e a ciclovia para bicicletas e cadeirantes – em outro, e falava, baixinho, “de bicicleta não me animo a passar aqui”.
Enquanto ia de um lado para o outro, seguia empenhada em esclarecer suas dúvidas sobre a estrutura.
– E como faz para segurar esse peso todo?
– A ponte, em todo seu conjunto, tem 14 torres (com 74 metros de altura) que a sustentam. As duas principais, que a gente chama de pilones, são as que seguram as barras de olhal – estruturas que dão a famosa curva arquitetônica da ponte. A ponte também é composta de dois viadutos e o vão central – explicou Samuel Tito Inácio.
Manezinha cobrou a demora na restauração
Ao longo dos últimos 28 anos foram feitas inúmeras tentativas de reformar a Ponte Hercílio Luz e devolvê-la à população catarinense. A última delas, ainda em andamento, foi assinada entre o governo de SC e a construtora portuguesa Teixeira Duarte em 16 de abril de 2016. O prazo final na ocasião era 18 de outubro de 2018. Não foi.
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Agora, a expectativa é entregar o monumento totalmente restaurado e disponível para o tráfego de pessoas e veículos em dezembro deste ano. Até março de 2020, a estimativa é concluir o serviço com a retirada das estruturas provisórias que hoje sustentam a ponte.
Salete deseja que a previsão oficial, desta vez, realmente se confirme. Para os técnicos Samuel e Marcos, ela deixou claro seu inconformismo com a demora em restaurar o bem histórico. Pediu licença, e perguntou “por que não fizeram isso antes”. O questionamento de Salete podia muito bem ter sido feito por qualquer outro morador de Florianópolis. O endereço da pergunta é que poderia ser outro, já que os técnicos apenas executam os trabalhos na obra.
A resposta que ela queria ouvir talvez surja com o andamento da CPI da Ponte Hercílio Luz, instalada neste mês na Assembleia Legislativa de Santa Catarina. A intenção dos parlamentares é descobrir o porquê de tanta demora em reformar a estrutura e o motivo de tanto dinheiro – estima-se que mais de R$ 700 milhões tenham sido empregados nas tentativas de reformar a ponte.
Retorno que também pode emergir de investigação sobre aditivos contratuais feita pelo Ministério Público de Santa Catarina, que em dezembro pediu a indisponibilidade de bens de quatro empresas e oito pessoas – entre eles ex e atuais servidores do Deinfra – para que seja ressarcido aos cofres públicos um montante de R$ 230 milhões por irregularidades nas obras da ponte.
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A Justiça, em liminar, negou o pedido. O MP, então, recorreu. Ainda não há uma decisão sobre o recurso.
NÚMEROS
Inaugurada em 13 de maio de 1926, a Ponte Hercílio Luz tem 821 metros de comprimento e peso aproximado de 5 mil toneladas. Possui 14 torres de sustentação. As duas principais, chamadas de pilones, são as que seguram as barras de olhal – que dão a famosa curva arquitetônica ao cartão-postal da Ilha.
CURIOSIDADES
— A ponte foi construída para ligar a parte insular da capital do Estado, na Ilha de Santa Catarina, à parte continental, visando substituir o antigo serviço de ligação por balsas.
— Foi tombada como patrimônio histórico, artístico e arquitetônico de Florianópolis em 4 de agosto de 1992.
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— Na data em que comemoraram-se os 71 anos de construção, 13 de maio de 1997, o tombamento foi homologado pelo governo estadual.
— É a maior ponte pênsil do Brasil e possui o 132º maior vão pênsil do mundo.