É uma sexta-feira de outubro e o relógio marca 10h na Secretaria de Desenvolvimento Social de Blumenau. Ali, três mulheres caminham a passos lentos para dentro do prédio. Uma delas carrega no colo a pequena Eduarda*, de dois anos e oito meses. Ao lado está a mãe biológica da menina, Andressa Michelle Klotz. Ela trouxe um presente especial para o encontro, mas quem o leva nas mãos é uma psicóloga.

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Sem saber quem é quem, até parece uma cena normal, mas não é. Mãe e filha estavam sem se ver há quase um ano e meio. Andressa trava uma verdadeira batalha judicial para reaver a guarda da filha, levada para o abrigo quando tinha oito meses de vida. Por seis meses as duas ainda puderam estar juntas algumas vezes, mas os encontros foram proibidos pela Vara da Infância. 

Foi difícil segurar a emoção do reencontro. Pediram para não chamar ela de filha e não falar mamãe, para não mexer com cabecinha dela, e eu concordo. Eu a peguei no colo, ela é bem carinhosa e sapeca — conta a mãe. 

Andressa é uma das mães de Blumenau que integra o movimento “11 mães, 15 crianças”, que ganhou repercussão nacional em julho após uma série de manifestações em frente ao Fórum depois de perderem a guarda dos filhos. Elas apontam supostas falhas nos processos e alegações sem provas. A maioria dos casos teve decisão em primeira instância e está em análise no Tribunal de Justiça de Santa Catarina (TJSC). 

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O reencontro tanto tempo depois é fruto de uma liminar concedida pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ) atendendo pedido da Defensoria Pública de Blumenau, responsável pelo caso de Andressa. Eduarda passou por uma família acolhedora e em agosto chegou a começar a convivência com uma família para adoção definitiva. Porém, o ministro Paulo de Tarso Sanseverino também determinou o retorno ao abrigo.

Processo que se arrasta

O processo que culminou no envio da pequena Eduarda para adoção começou em outubro de 2020. A criança tinha apenas oito meses na época. Andressa conta que no dia dos fatos recebeu uma série de ameaças de morte do ex-namorado e pai da pequena. Segundo ela, apavorada, decidiu pediu ajuda à psicóloga com quem se tratava de depressão para colocar a filha em segurança, longe de uma possível agressão. 

Entretanto, conforme o relato da mãe, o Conselho Tutelar apareceu na porta da casa dela horas depois, pegou a menina e a levou para o abrigo. Segundo o texto da sentença em primeira instância, o serviço social chegou a oferecer abrigo para mãe e filha irem para a Casa Elisa – espaço destinado à vítimas de violência doméstica, mas a mulher não teria aceitado. 

Andressa afirma que as conselheiras teriam dito que cuidariam da criança até ela resolver a situação. Três dias depois, quando voltou para buscar a garota, não conseguiu mais levá-la para casa.  

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A mãe começou a receber acompanhamento do serviço social e, com autorização da Justiça, a pequena deixou o abrigo em abril de 2021 para ir morar com a avó materna. Mas cerca de 40 dias depois a criança foi novamente retirada do lar, quando veio à tona que a avó, naquele momento guardiã legal da neta, entregou Eduarda à mãe, alegando que não tinha condições de saúde de manter os cuidados da menina. 

> Caso de mães de Blumenau que perderam os filhos pode ser levado até a ONU

Um dos principais apontamentos para a criança ser tirada do lar, conforme o processo, é o fato de Andressa ter manifestado interesse em entregar a filha à adoção por duas vezes. A mãe não nega que se informou sobre o assunto durante a gestação, mas garante que quando a filha nasceu mudou de ideia. No episódio em que entregou Eduarda ao Conselho Tutelar, em outubro de 2020, ela diz que se tratou apenas de um pedido de ajuda para o momento. 

— Só porque eu estava desesperada naquele dia por causa das ameaças do meu ex, a Justiça entendeu que souo incapaz de exercer a materinidade — desabafa Andressa. 

O Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), no artigo 166, diz que o consentimento no caso de entregar a criança à adoção é retratável até a data da realização da audiência e os pais podem exercer o arrependimento no prazo de 10 dias. Na análise do advogado especialista em Direitos Fundamentais, Peter Schweikert, que participou de audiência pública sobre o caso das mães de Blumenau, apesar de se tratar de um direito legal, no caso de Andressa é usado contra ela. 

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— Para alguns, esse movimento pode parecer que a criança está sendo tratada como bola de pingue-pongue, que se nega a condição do bebê como sujeito, mas na interpretação mais compromissada com os objetivos da constituição, com todo esse passado histórico, vai dizer que não. Esse movimento da mãe é extremamente natural das pessoas que sofrem violência, e cabe a nós usar todos os esforços para que essa mulher se reerga e possa ter a integridade da família garantida — frisa o especialista.

O processo está atualmente no Tribunal de Justiça de Santa Catarina. Houve um novo pedido de avaliação psicossocial da mãe, com um laudo psiquiátrico apontando se Andressa tem condições emocionais de cuidar da filha. Isso porque, ao longo do processo, outro tópico que aparece várias vezes seria a “instabilidade emocional” dela. Andressa faz tratamento psicológico e usa medicamentos controlados. Segundo ela, passou por tratamento para depressão, mas o diagnóstico correto é de estresse pós-traumático, após as agressões do ex-namorado. 

— O fato de ela buscar entregar a criança, se arrepender depois, tudo isso é classificado como instabilidade emocional, uma questão psicológica. Mas na verdade é uma grande violência de gênero […] não por acaso aqui é usada em relação à mãe não ao pai — pontua Schweikert.

A mulher diz que a primeira vez que apanhou do homem ainda estava no início da gravidez. Em um dos episódios, chegou em casa bastante machucada, segundo o relato dos próprios familiares no processo. O homem, contra quem Andressa conseguiu medida protetiva, disse à Justiça que a companheira fazia uso de drogas e a informação também é trazida à tona nos autos. Ela admite que provou maconha com o então namorado, mas apenas em um momento e não é dependente química. 

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O pai da menina também manifestou interesse na guarda de Eduarda, mas não conseguiu. 

No segundo semestre deste ano a menina saiu de uma família acolhedora e passou para o processo de integração à família interessada na adoção. Nesse intervalo, o caso chegou ao STJ, por meio de Habeas Corpus da Defensoria Pública de Blumenau para que a mãe pudesse voltar a ver a filha. O ministro Paulo de Tarso Sanverino acatou o pedido e liberou os encontros novamente. 

— Isso tudo é muito complicado. Ela poderia estar na minha casa, me chamando de mãe. E agora tem que recomeçar tudo de novo. No final, acredito, o vínculo materno vai vencer — desabafa Andressa. 

Adoções
Adoções – (Foto: NSC)
Destituições
Destituições – (Foto: NSC)

Reintegração
Reintegração – (Foto: NSC)

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Problema volta à tona

O ministro também salienta na decisão um aspecto que a Defensoria Pública de Santa Catarina tem enfatizado desde o começo das manifestações das mães de Blumenau: o fato de já na primeira instância as crianças serem colocadas para a adoção enquanto as famílias ainda podem recorrer da decisão. Ele cita a Resolução 289/2019 do Conselho Nacional de Justiça, que no artigo 3 diz: 

“A colocação da criança ou do adolescente na situação “apta para adoção” deverá ocorrer após o trânsito em julgado da decisão do processo de destituição ou extinção do poder familiar, ou ainda quando a criança ou o adolescente for órfão ou tiver ambos os genitores desconhecidos”.

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Em agosto, quando o caso das mães de Blumenau ganhou repercussão nacional, a OAB Blumenau esteve reunida com a Vara da Infância e da Juventude para tratar do tema. Um dos encaminhamentos enviados ao TJSC foi sobre a possibilidade de agilizar a análise dos recursos nesses processos, especialmente quando houver pedido de suspensão dos efeitos da decisão. 

Encontro para tratar do caso das mães de Blumenau

Encontro para tratar do caso das mães de Blumenau (Foto: Divulgação, OAB Blumenau)

“Com isso, seriam evitados, ou pelo menos minimizados, os impactos negativos que podem ser gerados às famílias e às crianças”, diz nota da época publicada no site da OAB Blumenau.

A citação pode ser exemplificada com uma afirmação do Ministério Público de Santa Catarina, na análise do processo em segunda instância do caso de Andressa, quando diz: “Criança hoje com mais de dois anos de idade e já está inserida e adaptada na família extensa, portanto, uma nova diligência apenas atrasaria o processo que já se encontra bem instruído”, ao argumentar ter provas suficientes que a mãe não tem condições de cuidar da filha. 

O advogado Peter Schweikert vê a situação de outra persepctiva: 

— Acionar o cadastro de pretendes de adoção antes de uma ação de destituição do poder familiar é algo que tem que ser muito excepcional, quando, por exemplo, pais estão completamente sumidos, nunca mais deram respostas, não tem ninguém da família para ser consultado. Agora, num caso como esse, da mãe estar o tempo todo lutando, chega a ser cruel. Parece ser uma estratégia de colocar terra sobre tudo e falar “oh, tudo bem que um monte de coisa pode ter acontecido, mas o fato é que a criança já está com uma nova família, então vamos virar a página”. Isso não pode ser feito.

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No começo de outubro, ao ser questionado sobre os encaminhamentos do encontro, a assessoria de imprensa do Tribunal de Justiça de Santa Catarina disse que “os fatos estão sendo apurados no âmbito da Corregedoria-Geral da Justiça, sob sigilo por determinação legal”.

Assista ao especial sobre as Mães de Blumenau

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