Seria o adulto uma criança que, ao perder a mágica de fantasiar, torna-se alguém incapaz de enxergar o que acontece diante do próprio nariz? Essa pergunta é um dos eixos a percorrer O Tigre na Sombra, novo romance de Lya Luft, primeira ficção longa da autora desde O Ponto Cego (1999).

Continua depois da publicidade

Aclamada como romancista desde sua estreia, com As Parceiras (1980), Lya diversificou as vertentes de sua obra nos anos 2000, publicando literatura infantil (como a série da Bruxa Boa), crônicas (Em Outras Palavras) e ensaios (Perdas & Ganhos, Pensar É Transgredir, Múltipla Escolha e A Riqueza do Mundo). A ficção foi brevemente resgatada em O Silêncio dos Amantes, coletânea de contos de 2008, mas o retorno ao romance se dá apenas agora, 13 anos depois do último. De acordo com ela, um dos motivos é que seus livros vão se fazendo à medida que as ideias aparecem, não em um plano determinado:

– Não sou o tipo de escritor disciplinado que elabora todas as etapas do livro antes de começar. O Erico (Verissimo, de quem Lya foi amiga) planejava tudo, desenhava as pessoas. Eu escrevo o livro quando o tenho na cabeça. Escrever é meu barato particular, não é uma obrigação.

O Tigre na Sombra é centrado na figura de Dolores, filha mais nova de uma mãe amarga e um pai dócil e aparentemente dominado. Nascida com uma perna mais curta do que a outra, Dolores cresce sem o afeto da mãe, para quem a deformidade da filha é quase uma ofensa, ligada muito mais às figuras fascinantes da avó – uma mulher romântica que incentiva as fantasias infantis da neta, e do avô, um ex-marinheiro cheio de maravilhas para contar. É uma abordagem que, se lembra um pouco a de O Ponto Cego, narrado pelo prisma da infância, também retorna a dois elementos chave da obra de Lya: o ponto de vista feminino (no romance anterior, a voz era a de um menino) e a formação de uma identidade feminina em uma família problemática.

– Todas as relações são difíceis, e as mais próximas se tornam mais árduas. Tive uma família maravilhosa, mas, como escritora, sou fascinada pelo avesso. Escrevo sobre família disfuncionais, com parentes que não se gostam ou se torturam. Escrevo sobre famílias que são como a família não deveria ser – diz Lya.

Continua depois da publicidade

Dolores é chamada por toda a família de Dôda. Cresce como uma criança solitária, propensa a ver o mundo com olhar mágico: o barulho do mar, ensina o avô, é o murmúrio do mundo; faz amizade com um garoto que não existe; e, finalizando, certo dia encontra nos fundos do pátio, um filhote de tigre de olhos azuis. A própria narrativa escolhe não afirmar se sua imaginação inventa o que não existe ou se a infância tem, na verdade, acesso a um território mágico que se torna interdito na vida adulta. Quando cresce e consegue driblar o desamor materno e o defeito físico, Dôda se torna vulnerável a um golpe que o leitor parece imaginar bem antes dela – a senhora dos mistérios não vê mistérios onde deveria.

– Quando somos crianças vemos o mundo de um jeito que, depois de sermos educados, desaparece – comenta a autora.