Não posso com frio. Nunca pude. Nasci goiana, não nasci pra frio.
Em Goiânia, quando faz 18 °C, já está todo mundo comendo pamonha, tomando caldo e usando “blusa de frio”, casaco em goianês. É a época da Pecuária, uma festa com leilão de vacas, duplas sertanejas, cheiro de esterco e mulherada com botas de cano longo e salto alto.
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Então resolvi estudar em Florianópolis. Cheguei naquele agosto de 2008. O inverno me pegou de calças curtas, o vento penetrava minhas camadas de blusa de frio, não parava de cair água do céu nem de passar tragédia na TV. Mas um dia, a tormenta se foi e as magias da Ilha se revelaram pra mim.
Então resolvi estudar na Europa – intercâmbio universitário. Escolhi o sul da Espanha, sabia que lá o frio não castigava muito. A cidade eleita foi Cádiz, onde os termômetros não costumam marcar menos de 10 °C.
Mas sou goiana. Nunca subestimem minha capacidade de sentir frio.
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Cheguei em setembro de 2011, e não tardou a chegar o inverno. Abraçada pelo Atlântico, Cádiz é quase ilha. O mar deixa o frio safado e grudento, a umidade se mete nos ossos, e a sensação térmica é bem mais cruel do que a temperatura.
Dividia com dois uma casa velha, sem calefação, com janelas de vidro fino. Economizar era lei. Havia um pequeno aquecedor elétrico, mas só era permitido ligá-lo em caso de hipotermia. O banho deveria ser rápido, já era hora de sair quando a água começava a esquentar.
Minhas unhas estavam sempre tão roxas que nem era preciso esmalte. Para aquecer as mãos, tudo valia. Minha fonte de calor preferida era a torradeira, mas eu sempre exagerava e meus cafés da manhã tinham sabor de dedos queimados.
Era frio de fora pra dentro e de dentro pra fora. Sem a família, sem os melhores amigos, sem um cobertor de orelha. Com os outros intercambistas, pouco contato e nenhuma afinidade. Rodeada de franceses frios, alemães gelados, finlandeses congelados, me sentia ainda mais distante dos meus.
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Arranjei um bico de relações públicas de um bar, o nome bonito para “distribuir publicidade na rua”. Então veio a Onda Siberiana, aquela que matou 360 na Europa, sabe?
A noite mais fria do inverno passei em pé, tentando entregar panfletos numa gélida esquina.
As pessoas faziam não com a cabeça, a boca tampada pelo cachecol e as mãos enfiadas no bolso. Minha mandíbula batia, eu maldizia a Sibéria e a madrugada tremia comigo. Mas veio fevereiro e uma lufada de calor junto. Vieram intercambistas da UFSC, aplacando a saudade da pátria, veio o carnaval, vieram minhas tão sonhadas viagens, e tudo foi amornando. Aquecida, vi que todo frio vale a pena. Sofrer é legal, deixa a gente mais forte, mais preparado para os invernos vindouros.
Bem, sofrer é legal, mas só de vez em quando. Doe blusas de frio.
Luisa Nucada é estudante de Jornalismo