Na antevéspera do Natal, a menina Lucinda Heather Verissimo Sykes, de quatro anos, começou a correr pela casa da Rua Felipe de Oliveira, gritando:

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– Boas notícias! Boas notícias! O vovô está andando sozinho!

As notícias são realmente boas. O avô de Lucinda, marido de Lúcia, pai de Fernanda, Mariana e Pedro, criador do Analista de Bagé, de Ed Mort, da Velhinha de Taubaté e da Família Brasil, não apenas está andando: está também escrevendo novamente. Depois de 24 dias de internação hospitalar, 12 deles na UTI do Hospital Moinhos de Vento, e mais 19 dias de repouso em casa, Luis Fernando Verissimo voltou a escrever suas crônicas e a desenhar seus personagens, para alívio e alegria de seus milhares de admiradores em todo o país.

Lucinda gritou ao presenciar um dos exercícios de fisioterapia a que o cronista vem se submetendo para reverter a perda de massa muscular decorrente da internação e do tratamento:

– Quando saí da cama pela primeira vez, não conseguia caminhar. Tive que me abraçar na enfermeira. Ainda estou reaprendendo a andar – conta o cronista, na primeira entrevista depois do grande susto.

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Veja o vídeo em que o escritor fala sobre a recuperação:

Tudo começou no dia 21 de novembro do ano passado – agora quem conta é Lúcia, a diligente esposa do escritor. Chegados de uma viagem, ela e ele apresentavam sintomas de gripe, mas já tinham consultado o médico. Depois do almoço daquela quarta-feira, ele se recostou no sofá da sala e começou a respirar com dificuldade. Lúcia e a filha Fernanda pensaram que ele estava tendo um ataque cardíaco e o levaram direto para a emergência do hospital, onde já os esperava o cardiologista Sandro Gonçalves.

– A partir daí, já não lembro de mais nada – interrompe Verissimo.

Mas Lúcia lembra, ainda com emoção. Ele foi colocado no soro e encaminhado para uma sala de espera em que estavam outros pacientes nas mesmas condições. Queixava-se de dor no peito. O enfermeiro fez um teste, perguntando qual era a intensidade da dor numa escala de um a 10. A resposta foi preocupante:

– Oito!

Voltar a escrever foi desafiador

Na base do Isordil, ele foi encaminhado para a Sala Vermelha e dali para a UTI, onde ingressou no sono induzido e nos sonhos e delírios que começa a relatar a partir da crônica de hoje, na página 2.

– Tinha que escrever primeiro sobre essa experiência – justifica-se.

O cronista do Brasil ainda está debilitado, aceita auxílio para levantar-se da cadeira, mas já anda sozinho pela casa e até pelo pátio da propriedade que foi de Erico Verissimo. Três vezes por semana, faz alongamentos e caminhadas sob orientação do fisioterapeuta Carlos Eduardo Saldívia, que já chegou na casa com uma história curiosa para o folclore familiar: sua mãe trabalhava como rodomoça do ônibus que levou Erico em sua última viagem a Cruz Alta, em outubro de 1975. Na ocasião, ele presenteou-a com um livro autografado e com um anel comprado em Lajeado. Hoje, o filho ajuda Verissimo a reaprender a andar.

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Para voltar a escrever, porém, ele não precisa da ajuda de ninguém. Sequer submeteu os textos à leitura dos familiares que acompanham com atenção sua convalescença. Mas não foi tão fácil como poderão supor os leitores de seus talentosos textos:

– Foi difícil, não fluiu. As pessoas não sabem o quanto a gente sofre para escrever – queixa-se.

Bom para os leitores. Como ensinava o inglês Samuel Johnson, o que é escrito sem esforço é lido sem prazer.

Lucinda tem razão: é a melhor notícia deste início de ano.

Delírio inspira primeira crônica

Durante as quase duas semanas em que permaneceu sedado e entubado, Luis Fernando Verissimo teve sonhos, visões e delírios que hoje parecem hilariantes, mas que na sua viagem pela enfermidade pareciam muito reais:

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– Eu via coisas que ninguém mais via – relata, sério.

No primeiro sonho (que Verissimo descreve na crônica da página 2 de hoje), ele tentava se equilibrar dentro de um prédio de lata, que estava ruindo. Porém, quando o filho Pedro foi visitá-lo na UTI, ele contou que esteve no Empire State Building. Para a filha Mariana, relatou apenas que estava num edifício alto. Depois, em casa, contou que também esteve num hotel em Pelotas, um lugar onde nunca estivera antes.

Mas o mais impressionante de seus delírios foi imaginar que a UTI do hospital era um entreposto do tráfico de crianças orientais. Quando um familiar chegava para a visita, ele contava com ar de espanto:

– Acontecem coisas de madrugada aqui.

E falava numa conspiração que tinha como objetivo o tráfico de vietnamitas.

Pedro tem uma explicação para tantas visões:

– O pai passou a vida toda criando personagens, imaginando coisas. Continuou a fazer isso no hospital, só que meio pirado.

Verissimo aproveita para brincar:

– Eu ainda não estou totalmente convencido de que não houve nada disso.

É um indício de que vai utilizar os sonhos e os fatos recentes na construção de novas crônicas e contos, como fez em seu livro mais recente, Diálogos Impossíveis, que mistura personagens da história e da literatura. O próximo já está programado: será a reedição pela Objetiva do conto A Mancha, lançado pela Companhia das Letras.

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– Vamos acrescentar mais duas ou três histórias – revela.

Ao ser questionado sobre uma possível ressurreição de seus personagens mais conhecidos, Verissimo é enfático:

– Eles estão aposentados. A Velhinha de Taubaté morreu. O Ed Mort também não volta. Mas o Analista de Bagé continua lá.

Como se vê, delírios também podem virar realidade.

O vírus e a musa

> Ricardo Ghelman, médico e genro do escritor, casado com Mariana, ajuda a entender como uma gripe levou o sogro a correr risco de vida: “Os vírus identificados são Influenza tipo B e tipo A. Eles geraram uma lesão muscular chamada rabdomiólise, que o levou à obstrução renal. Por isso teve que fazer hemodiálise.”

> Lúcia e seus filhos fazem questão de elogiar o tratamento dispensado ao cronista no Hospital Moinhos de Vento. “Eles informam cada procedimento, deixando o paciente tranquilo. E o Luis Fernando foi um paciente exemplar, nunca reclamou de nada”, assegura Lúcia.

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> Além das placas colocadas por admiradores de Verissimo na frente do hospital, com desenhos das Cobras e do Analista de Bagé, inúmeras manifestações de apoio chegaram aos familiares do escritor. “Gente que me encontrava na rua, pessoas desconhecidas, todos diziam que estavam rezando por ele”, conta Lúcia.

> Uma das brincadeiras de Lúcia é dizer que o marido começou a se recuperar mais rapidamente depois que recebeu um certo telefonema: “Quando ele ouviu a voz macia da Patrícia Pillar, levantou sem a ajuda de ninguém”.