Luís Augusto Fischer é autor de uma nova edição reunindo Contos Gauchescos e Lendas do Sul, de Simões Lopes Neto. A obra, lançada pela L&PM, traz textos introdutórios e de análise do autor e de sua obra. Mas o destaque fica para as notas de rodapé que comentam expressões de época e contextos históricos e culturais. Fischer listou 1160 notas para os Contos Gauchescos e 513 para as Lendas do Sul. A seguir, confira uma entrevista sobre o trabalho de edição.

Continua depois da publicidade

Zero Hora – Qual foi a origem da ideia de fazer uma edição anotada, com notas de rodapé?

Luís Augusto Fischer – Desde 1980, certamente, todos os anos eu leio Simões Lopes Neto com os alunos. Mas não é por obrigação, eu acho que é bom mesmo. Desde o começo, especialmente como professor, sentia falta de uma edição anotada que conversasse com o leitor urbano de hoje. Então, esta minha edição é fruto do meu trabalho como professor, que me fez ver onde os alunos e eu empacávamos na leitura. Tem a famosa edição da Globo dos anos 1940, organizada pelo Augusto Meyer, com notas supercompetentes do Aurélio Buarque de Holanda, posfácio do Carlos Reverbel, uma edição superimportante. Mas ela não me satisfazia porque as notas já estavam muito distantes do meu mundo de leitor e eram no fim do livro, fazendo com que, a cada momento, tenha que ir pro fim e voltar. Para facilitar, pensei em notas no pé da página e não no fim do livro.

ZH – O que o motivou a fazer uma edição anotada e não uma edição crítica?

Continua depois da publicidade

Fischer – Uma edição crítica obedece a certos preceitos que não estão preocupados com o leitor comum. Ela faz uma estabilização do texto a partir da primeira edição e das sucessivas. Tem um sentido acadêmico. Já a edição anotada tem em vista o leitor comum.

ZH – No texto de apresentação do livro, o senhor fala na distância existente entre o autor (e seu texto) com o leitor de hoje. Qual foi o esforço na busca dessa aproximação?

Fischer – A necessidade de aproximação foi pensada pela linguagem e pelas referências históricas e culturais que o Simões Lopes Neto mobiliza. Ele escreveu 100 anos atrás. Mais do que isso, ele escreveu, nos contos, passando a palavra para o Blau Nunes, que é um sujeito, pelo que se deduz das leituras, do campo, um homem a cavalo, um gaúcho. É um sujeito que fala com o jargão do mundo daquela época. Isso já não existe mais. O que existe de cultura ligada ao mundo gauchesco é mediada pela existência do tradicionalismo, que é algo que aconteceu 50 anos depois de Simões publicar o livro. Portanto, ele escreveu há 100 anos, num dialeto muito particular que já não tinha vigência no mundo urbano de então. Sua obra é republicada novamente, como literatura consistente, nos anos 1940 como a edição da Editora Globo. A obra passa, por assim dizer, dormindo por quase 40 anos. Essa edição da Globo recoloca Simões em circulação, fazendo com que seja visto como figura importante. Mas os anos 1940 também não são mais o mundo que a gente vive hoje. A distância é muito grande, tanto de tempo como de registro cultural.

Continua depois da publicidade

ZH – Como foi trabalhar com uma linguagem tão característica como a de Simões Lopes Neto?

Fischer – Eu precisei fazer opções de texto e tomar decisões sobre pontuação. Em alguns momentos, achei que tinha que colocar uma vírgula, mas de maneira muito criteriosa. Como Simões buscou aproximar a escrita da fala, ele se valeu muito de recursos de pontuação, que são a parte mais musical da língua. Quando tu colocas exclamação, interrogação, reticências, travessão… Tu estás fazendo um recurso expressivo que se aproxima da fala. Nisso, eu tentei ser muito rigoroso.

ZH – Quais foram as dificuldades e os desafios nesse trabalho rigoroso?

Fischer – Muitas, além de dúvidas. Esse é um trabalho que pode ir para muitos lados. A gente pode fazer opções simplificadoras, mais complexas… É um trabalho solitário que envolve responsabilidade filológica, no sentido de saber que a gente está lidando com um texto importante, e também opções que têm a ver com pedagogia, não apenas do aluno em sala de aula, mas no sentido mais amplo do leitor. Em um nível inicial, as dificuldades têm a ver com vocabulário. Quando eu lia como aluno de letras, eu não entendia muitas das palavras, como o leitor de hoje em dia não entende. Há também dificuldades mais sutis, que têm a ver com a natureza da literatura do Simões. Como se faz para registrar por escrito a fala de um sujeito que é alfabetizado, mas não é de cultura letrada? Na época do Simões, essa pergunta foi feita por vários outros escritores. E quem conseguiu dar a melhor solução literária foi ele. Outros escritores faziam a opção mais simplificada. Quando se tratava de um cara do povo falando, o escritor escrevia errado para representar a fala popular. Isso é um tipo de rebaixamento que o Simões evitou de maneira muito sábia. Ele tinha uma intuição linguística muito excelente. Eu tentei acompanhar também isso. O desafio é como lidar com o mundo da fala, o mundo da performance oral, pois o Blau Nunes está contanto a história para alguém. E para isso, Simões tinha uma boa habilitação, talvez por ter escrito antes para o teatro.

ZH – Na introdução, o senhor fala em reposicionar Simões Lopes Neto não somente como um escritor regional, mas também autor de uma literatura que encontra paralelos universais se considerarmos nomes como Joseph Conrad. Como é sustentada essa análise?

Continua depois da publicidade

Fischer – Esse foi um desafio intelectual magnífico, que é justamente reposicionar o Simões e colocá-lo no nível que ele merece. Ele é um grande escritor e tem que ser lido na pauta de grandes escritores de sua família, que não é somente dos chamados regionalistas. Sua família é Joseph Conrad, Guimarães Rosa… Tentei fazer jus ao tamanho que ele tem e que deve ser reconhecido. A gente, como gaúcho, tem aquela coisa de que, para ser legitimamente bom, precisa que alguém diga ou reconheça. É uma condição mental provinciana e patética que tentei evitar, apontando a relação de Simões com outros grandes escritores.

ZH – Em sua opinião, qual é a imagem do gaúcho que Simões Lopes Neto constrói?

Fischer – Ele tem uma perspectiva que, em relação ao gaúcho do tradicionalismo, está a léguas de distância. Embora Simões tivesse um conteúdo de exaltação, orgulho e certo ufanismo como pessoa do seu tempo e como ativista cultural e fosse muito impregnado do civismo daquela época, na literatura ele fez opções claramente numa direção oposta. Ele coloca em cena como protagonista um homem simples, não um proprietário de terras. Blau Nunes é um sujeito que narra derrotas e fracassos e não fica se exaltando como um galo que ganhou todas. Simões ainda coloca em cena personagens femininas fortíssimas, ao contrário do traço machista reconhecido no tradicionalismo. Ele é um grande artista, um grande escritor e, assim, ultrapassou a ideologia do próprio autor. É como um cara conservador, autor de uma literatura revolucionária. Simões tinha, como todos os homens de sua época, condicionantes ufanistas, mas, como artista, foi muito adiante.

ZH – Ainda temos o que conhecer a respeito de Simões Lopes Neto?

Fischer – Nos últimos anos, foram revelados muitos documentos da vida dele. Eu mesmo estou trabalhando na edição de um livro dele, a partir de dois cadernos manuscritos. Estou mergulhando em Simões. Tem um livro chamado Terra Gaúcha que ele anunciou que estava escrevendo. E num certo momento, esse livro sumiu do horizonte. Entre 1904 e 1908, ele escreveu esse livro, mas depois foi abandonado. Nos anos 1950, o livro saiu, mas era uma obra didática de história do Rio Grande do Sul. Ocorre que há outro livro que ele chamava pelo mesmo nome, que é de leitura para escolares na faixa dos 10/12 anos de idades. O que estou trabalhando reúne dois manuscritos que hoje dão o tamanho de um livro de 180 páginas. É o Simões ainda sem ter escrito os Contos Gauchescos, escrevendo textos breves, tendo como autor um menino que conta sua experiência de férias na estância e sua vida de aluno na escola onde estuda. Simões escreve isso se preparando para os Contos Gauchescos e em um momento em que ele está perdendo sua condição de herdeiro de uma grande fortuna e virando um sujeito comum que não sabe o que fazer. E uma das coisas foi fazer livros didáticos.

Continua depois da publicidade