*Por Priya Krishna
O livro de receitas predileto da chef e artista Krystal Mack não tem fotos bonitas dos pratos. As receitas não foram testadas por profissionais e os autores não são críticos ou donos de restaurantes.
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Trata-se de um livro de receitas comunitário de 1988 chamado "Naparima Girls' High School Diamond Jubilee 1912-1987" (Jubileu de Diamante da Escola Feminina de Naparima 1912-1987), repleto de contribuições de alunas e funcionários de uma escola em Trinidad e Tobago em que a chef nunca esteve. O livro tem uma capa magenta berrante e as receitas são básicas: arroz e ervilhas caribenhas, frango teriyaki, bolo de libra com baunilha.
Agora, isolada em casa, em Baltimore, Mack resolveu criar o próprio livro de receitas comunitário, intitulado "How to Take Care" (Como Cuidar, em tradução literal), incluindo poemas e atividades. O livro, lançado recentemente em edição digital, custa US$ 5, e todo o dinheiro arrecadado vai para organizações que acolhem vítimas de violência doméstica nos EUA.
As mais de 25 receitas, enviadas por outros artistas e chefs, são simples e baratas, como uma apetitosa salada de frutas e uma receita de chá de gengibre que convida os leitores a "cantar ou entoar, para que as vibrações também se misturem à infusão".
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"São livros de receita que devolvem o poder às pessoas, diferentemente dos livros de receitas contemporâneos que exigem defumadores e desumidificadores em casa", disse Mack.
Em uma época de chefs famosos, livros cheios de fotos incríveis e sites multimídia, o livro de receitas comunitário pode parecer um anacronismo, um resquício das ceias de igreja e das festas escolares para arrecadação de fundos. Entretanto, a pandemia do coronavírus deu um novo sopro de vida a esse tipo de livro, à medida que colegas de trabalho, corais, mesquitas, amigos e até mesmo desconhecidos buscam maneiras de se conectar e trocar receitas.
Esses novos livros são diferentes de seus antecessores, frequentemente mais publicados em arquivos do Google Docs do que em páginas impressas, e as receitas às vezes são explicadas em vídeo. Além disso, também não contam com as fotografias impecáveis e inatingíveis dos livros de receita contemporâneos, optando por uma abordagem mais pragmática e pessoal, e documentando a vida não como poderia ser, mas como realmente é.
"Estamos vivendo um momento poderoso em uma época impressionante da história humana", afirmou Mack, de 34 anos. Livros de receita como o dela são "cápsulas do tempo, que podemos consultar para ver como escolhemos sobreviver e nos unir coletivamente".
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Um antigo livro de receitas comunitário que se popularizou nos EUA foi "A Poetical Cookbook" (Um Livro de Receitas Poético, em tradução literal), de Maria J. Moss, publicado em 1864 com o objetivo de arrecadar fundos para os soldados feridos da União durante a Guerra Civil dos Estados Unidos. Mais tarde, no mesmo século, as sufragistas criaram livros de receita para espalhar sua mensagem. Desde então, instituições como igrejas, bibliotecas e governos locais contam com os livros de receita comunitários para arrecadar dinheiro e compartilhar receitas.
Em meados de março, os residentes de pediatria do Hospital Geral de Massachusetts, em Boston, estavam todos em casa, esperando ser convocados para ajudar os colegas. Uma dessas residentes, Cyrelle Fermin, começou a postar receitas no grupo dos colegas no WhatsApp e criou um arquivo virtual, em que cerca de 20 pessoas começaram a incluir receitas com fotos em que apareciam preparando os pratos sugeridos pelos outros.
"Como trabalhadores da saúde, vemos coisas aterrorizantes todos os dias. Essa é uma forma catártica de canalizar nossas energias para uma atividade tangível, como compartilhar receitas", explicou.
No Centro Islâmico de Valley Ranch, em Irving, no Texas, as sessões de oração dos fins de semana geralmente atraem cerca de mil muçulmanos e são uma forma importante de arrecadar doações. Agora que essas reuniões foram canceladas, Nye Armstrong, diretora criativa da mesquita, vem pedindo aos fiéis que enviem receitas e fotos para criar um livro de receitas, digital e impresso, a ser lançado no fim do Ramadã, em maio, visando arrecadar dinheiro. Ela também organiza chás semanais pelo Zoom, com 15 a 20 integrantes que adoram falar sobre as receitas.
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Embora a culinária e os pratos variem drasticamente, os livros de receita comunitários compartilham um mesmo objetivo: reconfortar as pessoas com receitas simples, vindas da infância ou dos antepassados, e que já foram feitas inúmeras vezes.
As sessenta integrantes do Coral Feminino de Seattle criaram um livro de receitas comunitário digital chamado "Comfort Food in Challenging Times" (Comida Reconfortante em Tempos Desafiadores, em tradução literal). Nani Vishwanath, de 33 anos, que está à frente da iniciativa, contou que a maioria das integrantes incluiu suas raízes nas receitas – ela compartilhou uma receita de upma, um mingau indiano, enquanto uma integrante ítalo-americana enviou uma receita de macarrão cacio e pepe e uma integrante texana enviou uma de torta de pêssego.
"Essa é uma maneira diferente de conhecer as outras pessoas", disse Vishwanath. O livro de receitas também incluirá partituras dos arranjos prediletos das integrantes, "para sentirmos que é algo nosso".

Em casa, em Minneapolis, Justine Santa Cruz conta com uma infinidade de livros de receitas para encontrar inspiração. Mas, agora que não pode mais viajar ou ver a família, ela começou a sentir falta dos pratos típicos de sua família filipino-americana. Seus parentes estão espalhados por Minnesota, Vancouver, Colúmbia Britânica e Manila, nas Filipinas, e vêm cozinhando muito mais do que de costume. Por isso, ela criou um documento no Google para registrar as receitas de pratos básicos, como adobo de frango e sopa sinigang.
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Santa Cruz, de 30 anos, acredita que a quantidade de receitas disponíveis na internet às vezes é sufocante, desde aulas de culinária on-line dadas por chefs até passeios pela cozinha das celebridades em lives do Instagram. Muitos livros de receitas têm "um ponto de vista muito restrito e não dialogam com o leitor", resumiu.
Muitos dos novos livros de receita comunitários reúnem as vozes dos colaboradores. Em "Bone Apple Tea: The People's Cookbook", organizado em um arquivo no Google Drive, uma receita de sanduíche de frango é apresentada em PowerPoint, com etapas como "Tempere com o coração" e a instrução de beber cerveja enquanto o frango é grelhado. O livro foi iniciado por Lauren Belak-Berger, Benjamin Davenport e Jack Redell para um grupo de cerca de dez amigos espalhados pelo país.
Na página de "Introdução e Boas-Vindas", Redell, de 27 anos, que dá aulas para o quarto ano em uma escola no Brooklyn, convida os leitores a ser criativos e a postar receitas que deem uma sensação de formigamento conhecida como Resposta Sensorial Autônoma do Meridiano (ASMR, na sigla em inglês), ou a fazer vídeos com alguém se sentando em um bolo.
A estudante de pós-graduação Belak-Berger, de 26 anos, que está isolada com a família em Los Angeles, é vegetariana e não pode preparar os inúmeros pratos do livro que levam carne. "Mesmo assim, adoro ler as receitas, pois consigo ouvir a voz dos meus amigos na cabeça. É como se estivéssemos juntos", disse.
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Vários livros de receita comunitários incluem ingredientes baratos e não perecíveis, já que o acesso aos alimentos está cada vez mais difícil para muitas pessoas.
Isso é especialmente importante para Jillian Norwick, supervisora da Nadap, uma agência de serviço social com sede no centro do Brooklyn, que está organizando um livro de receitas para seus clientes, todos nova-iorquinos de baixa renda. A maioria depende do vale alimentação dado pelo Estado e não pode mais se reunir pessoalmente com a pessoa responsável por seu caso. Norwick achou que um livro de receitas comunitário poderia ajudar os clientes e contribuir para que eles e os responsáveis se mantivessem em contato.
Além de todas as limitações impostas pelo coronavírus, o livro de receitas deve levar em consideração que nem todos que participam do programa têm acesso a uma cozinha, a medidores ou a vegetais frescos. Entre as receitas há, por exemplo, um molho que pode ser feito com ervilhas congeladas amassadas com garfo, além de ideias para melhorar o molho de tomate enlatado.
"Podemos dar a eles todos os recursos emergenciais, mas um livro de receitas é uma maneira muito humana de compartilhar", explicou Norwick, de 27 anos.
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Os livros de receita comunitários também se moldam aos desejos de seus criadores. Não existem regras, métricas de marketing ou a necessidade de dividir as receitas em categorias.
Rhia Jade, artista em Nova Orleans que está organizando um livro de receitas virtual para pessoas queer chamado "Queers in the Kitchen", disse que a vantagem desse tipo de livro é que não é um problema que ele ressoe apenas entre um pequeno grupo de pessoas, ou que as receitas e as histórias sejam relevantes apenas durante este momento.
Um livro de receitas comunitário tem mais a ver com a união do que com a criação de um produto bem acabado para um grande grupo de leitores. "O objetivo é ser relevante para quem busca sentido no livro de receitas", concluiu Jade.
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