A história que se conta sobre Joinville dá aos imigrantes germânicos todo o protagonismo no que se refere ao desenvolvimento da cidade. As construções, monumentos e a própria data em que comemora-se o aniversário do município carregam a versão que se apresenta como oficial acerca da formação da então Colônia Dona Francisca. Para confrontar esta versão do dito mito fundador, o Movimento Negro Maria Laura lançou o livro “Fragmentos Negros”, em que autores trazem registros que comprovam não só a presença, mas a importância da população negra para a constituição do território joinvilense.
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Felipe Cardoso, mestrando em comunicação e um dos organizadores da obra, conta que, por meio de imagens, recortes de jornais e pesquisas, o projeto aborda uma “Joinville esquecida” — onde uma população foi invisibilizada pela hegemonia colonialista — e sugere o debate sobre uma Joinville multicultural.
Os registros mostram que os negros ocupavam a região que veio a ser Joinville já em 1826. Essa população, segundo o historiador e mestrando em Patrimônio Cultural e Sociedade Rhuan Carlos Fernandes, era escravizada e há evidências de fazendas da cidade que mantinham mais de 80 escravos. Fernandes cita, no entanto, que a história dessas pessoas não precisa ser contada apenas a partir da escravidão, já que há outros feitos importantes protagonizados por essa população, que encontrou maneiras de se sobrepor a invisibilidade.
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Parafraseando o filósofo francês Fritz Fanon, reforça que o livro tem o objetivo de tensionar a cidade a procurar o significado para os negros e que “as pessoas só são completas quando minimamente conhecem fragmentos de sua história”.
— Há uma tecnologia de poder muito alinhada com a ótica colonialista, que investe no racismo estrutural, mas principalmente no institucional, para se manter no poder e para tentar vender [a narrativa] de que a cidade é dos imigrantes europeus. Também é, mas a história de Joinville não se conta a partir dessa lógica — destaca Fernandes.
O historiador e mestre em Antropologia Willian Luiz da Conceição ainda reforça que os escravizados foram fundamentais para que os alemães fizessem os primeiros núcleos de ocupação da então Colônia Dona Francisca. Foram eles, segundo Conceição, que permitiram o conhecimento do território, e critica a historiografia clássica, que ignorou este fato.
— Hoje temos indícios para demonstrar que essa população, mesmo numericamente pequena, digamos assim, foi substancial para colaborar para a constituição da cidade — conclui.
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Negros foram enterrados no Cemitério dos Imigrantes durante a escravidão
Um dos poucos registros da presença negra na cidade e que é contado no capítulo 4 do livro é dos afrodescendentes que estão enterrados no Cemitério dos Imigrantes. Conforme certidões de óbito do Arquivo Histórico, 14 negros foram sepultados no local.
Seus nomes estão em um cenotáfio erguido no local e as mortes datam de 1866 a 1870, ou seja, durante a escravidão — período este ocultado pela história oficial contada sobre Joinville.
Fernandes diz que não é possível saber onde exatamente esses corpos foram colocados, assim como também não se sabe seus sobrenomes e de qual país africano vieram. O historiador garante que há muito mais negros que viveram e, consequentemente, morreram na cidade, e eram colocados em valas comuns. Os que foram para o cemitério, acredita, é porque tinham certa importância para a elite joinvilense.
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Fazendo um paralelo com as 490 sepulturas que guardam restos mortais de imigrantes, principalmente alemães, austríacos e suíços, Rhuan pontua que esses europeus vieram por conta própria, alguns até receberam sementes e algum tipo de cota para se estabelecer na Colônia, ao contrário dos negros que não tiveram escolha e muito menos auxílio.
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Registros da escravidão
No primeiro capítulo de Fragmentos Negros, o historiador Willian Luiz da Conceição discute três fotos, também do Arquivo Histórico de Joinville, que mostram pessoas negras. Conceição diz que essas imagens reforçam a invisibilidade do povo afro na cidade, já que não possuem data, não compõem um acervo específico e não carregam nenhum tipo de informação.
Conforme as pesquisas, chegou-se à conclusão de que as fotos foram tiradas na segunda metade do século 19, provavelmente perto do período da abolição. Analisando a composição desses arquivos, o historiador, com base em outros estudos sobre documentos fotográficos, acredita que uma das intenções dessas fotografias era de passar a imagem de uma escravidão mais amena e doce, onde os escravizados participavam de uma certa relação familiar.
— O que eu questiono no artigo é que essas imagens não foram espontâneas. Até porque, no século 19, as câmeras ainda precisavam ser pousadas durante muito tempo, então as pessoas estavam ali naquela pose durante vários minutos. Por isso penso que aquelas [fotos] foram, de fato, carregadas de intencionalidade — explica Conceição.
O historiador identifica o apagamento intencional desses arquivos e diz que o próprio dado da pesquisa está, justamente, na falta de informações sobre as fotos e as pessoas que nelas aparecem.
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— A ausência de informações para o historiador também é um elemento — ressalta.
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Quarto de despejo
Em 1948, quando começaram as casas térreas para construir edifícios, nós, os pobres que residíamos nas habitações coletivas, fomos despejados e ficamos residindo embaixo das pontes. É por isso que eu denomino que a favela é o quarto de despejo de uma cidade. Nós, os pobres, somos os trastes velhos.
A citação é da escritora e poetisa Maria Carolina de Jesus e abre o último capítulo do livro, escrito por Felipe Cardoso e pelo doutor em Filosofia Hernandez Eichenberger, onde são tratados os temas racismo estrutural e condições de moradia da população negra em Joinville.
O artigo leva em conta considerações do historiador Dilney Cunha, que cita um projeto de especulação imobiliária já durante o surgimento da cidade. À época, cita Eichenberger, com a queda da monarquia na França e o exílio da família real francesa, endividada e sem prestígio, as terras onde constituiu-se Joinville, e que a princesa Dona Francisca recebeu ao casar-se com o príncipe francês François Ferdinand Philippe, foram cedidas em 1849 para a Sociedade Colonizadora de Hamburgo. O objetivo era de que fossem povoadas e, futuramente, passassem a ter valor comercial.
No entanto, essas terras não eram desabilitadas e nelas já viviam portugueses, indígenas e negros, que eram escravizados desde o início do século 19. Mesmo após a abolição da escravatura, em 1888, o racismo ainda imperava e os negros, que deixaram de ser escravos, ficaram sem posses, lugar para ir e sem condições de adquirirem terras. Com isso, somado às políticas de embranquecimento da população, os afrodescentes foram jogados à margem da sociedade.
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— A gente acredita que a noção de racismo estrutural é a mais interessante porque, normalmente, para alguns setores da sociedade, o racismo é visto como uma prática puramente individual, ou então, institucional, que acontece dentro de uma empresa ou escola. Cremos que todos esses conceitos são legítimos, mas ainda assim é preciso explorar o fato de que as pessoas e instituições são racistas porque há um mecanismo de base na sociedade que propicia e promove o racismo, e que existem processos econômicos que conduzem a isso — argumenta.
Na pesquisa, os autores utilizaram dados do último Censo do IBGE, de 2010, que mostra que 13% da população de Joinville se autodeclara negra, e cruzaram esses dados com os números disponíveis sobre locais em que há ocupações irregulares da cidade, que apontou ao menos dez favelas.
— Cruzando os dados, chegamos à conclusão que em todas, sem exceção, há, no mínimo, o dobro da quantidade de pessoas negras, do ponto de vista proporcional. Ou seja, há três vezes mais pessoas negras [que ocupam esses locais]. Isso indica que o racismo tem essa face estrutural, digamos assim, invisível e invisibilizadora no sentido de que, se acabasse, num passe de mágica a ideia de injúria racial, ainda assim, o racismo estaria presente do ponto de vista da distribuição desigual de moradias e, portanto, de acesso à cidade e aos serviços públicos que a cidade proporciona. Essa face do racismo está presente para além da dimensão consciente dos agentes sociais.

Jornal abolicionista
“Ao público catharinense apresenta-se hoje a Folha Livre. Devido a iniciativa e aos esforços de um grupo de moços bem intensionados, a Folha Livre aparece a concorrer também ao jornalismo da província. O nosso programma é o programma de toda imprensa democrática e livre, moldado no mais sincero e acrysolado patriotismo. É FOLHA LIVRE porque alheia-se completamente das lutas inglórias e dissolventes da política partidária. É FOLHA LIVRE porque sua missão é o devotamento à causa pública e porque suas colunnas estarão sempre francas para tudo quanto for honesto e justo. Não queremos colher louros na carreira que vamos encetar-desejamos simplesmente granjear a estima do povo. Assim esperamos.”
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A citação é uma apresentação veiculada na 1ª edição do Folha Livre, fundado em janeiro de 1887, um ano antes da data de abolição da escravatura. Como conta a jornalista Carolina Manske, que fala sobre o periódico dominical no segundo capítulo do livro, o jornal abolicionista fazia críticas à sociedade da época e abordava assuntos locais e do estado, notícias do dia a dia da colônia, anúncios e textos de opinião.
Sua estrutura editorial era bastante parecida com a de outros jornais da época, mas contava com um conteúdo mais cheio de críticas, provocações e ironias aos leitores.
— Eles publicavam críticas aos escravocratas, denunciavam maus-tratos aos escravos, noticiavam os números atualizados de escravos no Estado e no Brasil e chegaram a publicar na íntegra o manifesto abolicionista do Centro Catarinense — destaca a jornalista.
Ao completar três meses na cidade, na edição número 15, o Folha publicou um texto informando que estava enfrentando críticas na região e que os pequenos periódicos não recebiam o apoio que precisariam para continuar na cidade.
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Já na edição de nº24, a última do jornal, foi lançado um texto comentando sobre seu fechamento e simbolizando que a missão da redação estava cumprida na cidade:
“Com o presente número chega a Folha Livre ao marco de sua existência, completando o semestre que foi o período marcado para teu viver. Por mais curta que fosse a sua vida poude ter ensejo de desviar-se do seu programa, entretanto nunca o fez. Trabalhou o quanto possível em prol do município e da província, já lembrando meios para desenvolvel-os, já reclamando medidas, já apontando deffeitos e louvando as boas praticas; no meio das lutas partidárias collocou-se sobranceira, estigmatisando os excessos e as enimosidades pessoaes; esposando as grandes causas, combateo a escravidão e a esterilidade governamental, sem comtudo offender, porque nunca entrou nos domínios da vida particular. Com o desaparecimento da Folha Livre acaba-se a nossa luta, da qual nos recolhemos sem louros porque nunca os pretendemos, mas sem levar comnosco ódios nem ressentimentos, e conservando uma grande soma de gratidão pelo acolhimento com que tão liberalmente foram pagos os nossos desinteressados serviços em favor dos negócios públicos. Se contra nós se armou alguma hostilidade, Ella foi tão impotente e ridícula, que não nos mereceu o trabalho de considerá-la: se tivemos desafectos elles foram tão poucos e pequenos que os despresamos. Lutando com serias difficuldades, procuramos vencê-las para tornar a nossa Folha independente dos pequenos interesses pessoais e livre de infundadas considerações. Está cumprida a nossa árdua missão: recebam os que apoiaram os nossos agradecimentos. A redação.”
Uma nova versão da história
Com livro lançado no mês da Consciência Negra, Felipe Cardoso, um dos organizadores do Fragmentos Negros, diz que entende a data como um processo para a reflexão e entendimento da realidade enfrentada pela população negra no Brasil e no mundo.
Para ele, o livro será importante para o resgate da história dos afrodescentes que viveram em Joinville, para que sua cultura seja mantida, propagada e que haja, de fato, um entendimento e enfrentamento das desigualdades políticas e sociais que segregam o povo afro.
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— Não há como a gente se compreender se a gente está pela metade. É no fragmento que a gente se completa, a história familiar é um fragmento. Espero que esta obra seja uma possibilidade de espelho — completa o historiador Rhuan Carlos Fernandes.