Em uma tarde de fevereiro, Kelly Thorndike teve um encontro casual curioso em um estacionamento de Baltimore, em Maryland, com Martin Lipkin, um velho amigo de escola. E o tempo trouxe uma grande mudança: o Martin que Kelly conhecia era branco; o homem na sua frente era negro.
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Esse encontro inicia a trama de “Your Face in Mine” (“Seu Rosto no Meu”, em tradução livre), primeiro romance de Jess Row, publicado pela Riverhead Books, que se junta a uma longa tradição de ficção racial. A história se passa em um futuro próximo e Martin é a primeira pessoa a se submeter à “cirurgia de redesignação racial” para mudar suas feições, pele, cor, textura do cabelo e até mesmo a voz. O pacote cirúrgico inclui uma nova biografia e até um treinador de dialeto, tudo isso como um corretivo para a “angústia racial” do personagem.
– Eu queria que o livro fosse o resultado lógico dos rumos que nossa sociedade está tomando – disse Row, de 39 anos, durante entrevista recente. E apontou para o estado atual da cirurgia plástica, em que é possível que características e partes do corpo sejam alteradas para esconder ou modelar etnias.
– Quero que as pessoas se perguntem, “Se pudesse, eu faria essa cirurgia?” – afirmou Row, autor de duas coleções, “The Train to Lo Wu” e “Nobody Ever Gets Lost” (não publicados no Brasil).
O escritor, grande fã do trabalho de James Baldwin, disse que a ideia de “Your Face in Mine” é explorar a maneira com que as pessoas tentam escapar de sua identidade racial, investigar o desejo de reconciliação racial e o medo e o desconforto profundamente inconscientes causados pelas raças.
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A apropriação da identidade étnica é um tema importante na literatura afro-americana há mais de um século, mostrando negros vivendo como brancos para escapar do preconceito. “Your Face in Mine” segue a mesma linha de histórias clássicas que tratam do tema como “The Autobiography of an Ex-Colored Man” (“Autobiografia de um Ex-Homem de Cor”), de James Weldon Johnson ? publicado anonimamente em 1912 e com o nome do autor em 1927 ? e a sátira de 1931, “Black No More” (“Negro Nunca Mais”), de George S. Schuyler, em que os negros querem testar um novo processo científico para se tornarem brancos.
O livro também lembra um pouco “Black Like Me” (“Negro Como Eu”), a narrativa inovadora de John Howard Griffin, de 1961, sobre um jornalista branco que escureceu a pele para se passar por negro e escreveu sobre a discriminação que sofreu.
“Your Face in Mine” tem elementos desse tipo de enredo, mas não para por aí. Em primeiro lugar, Martin era branco, e para ele, a mudança racial responde a uma necessidade psicológica, não social. Está mais para alguém que deseja uma cirurgia de mudança de sexo: Martin Lipkin (agora chamado Martin Wilkinson) sentiu que era um homem negro preso no corpo de um homem branco. Importante no caso é o fato de que a cirurgia corretiva da história é aberta a qualquer pessoa, de qualquer raça.
Farah Jasmine Griffin, professora de inglês e estudos afro-americanos na Universidade de Columbia, em Nova York, classifica o livro de Row como “uma nova abordagem sobre raça”, oferecendo a perspectiva incomum do branco Kelly e do ex-branco Martin, analisando a identidade racial e levantando questões sobre o próprio sentido dessa divisão.
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– Raça é o tudo aquilo que eles herdaram dos pais e da cultura hip-hop – disse Farah, referindo-se a Martin e Kelly.
– Que entendimento isso sugere? O que significa ser uma pessoa negra, nascida em um corpo branco? Não existem muitas pessoas brancas sendo achacadas pela polícia.
Ela se pergunta quantos brancos estariam dispostos a seguir o exemplo de Martin.
Mesmo se tratando de uma cirurgia fictícia, muitos dos procedimentos descritos no livro são reais.
– A verdade é que a cirurgia plástica que vemos hoje tem um componente racial ou étnico porque está relacionada com conceitos inerentemente raciais de perfeição física, como o “nariz romano” – Row disse em um e-mail.
“A raça é uma questão plástica?”, um artigo de capa recente da New York Magazine abordou esse tema, explorando as implicações de “plástica étnica” com a lista de procedimentos que vão “desde afinar o estereotipado nariz achatado dos asiáticos, negros e latinos, até achatar o estereotipado nariz afinado de árabes e judeus”.
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Allyson Hobbs, professora assistente de História em Stanford, que terá seu livro lançado em outubro, “A Chosen Exile: A History of Racial Passing in American Life” (Um exílio escolhido: história da adaptação racial na vida americana), disse que, na vida e na literatura, a adaptação racial mostra a complexidade e até mesmo o absurdo de categorias raciais.
– Historicamente, a vantagem de ser branco era muito mais clara, mesmo na literatura. Havia uma lógica econômica e social para se tornar branco – ela disse.
Sobre “Your Face in Mine”, ela comenta:
– O que esse livro pergunta é o que alguém espera ganhar por ser negro, hispânico ou asiático no século 21. O que se ganha e o que se perde com uma mudança de raça hoje?
O Martin transracial insiste em uma existência negra, o que acaba gerando uma reflexão sobre raças em Kelly, acadêmico fracassado que ainda sofre com o acidente que tirou a vida de sua esposa chinesa e de sua filha. Outra personagem, Julie-Nah, de ascendência coreana, começa querendo se tornar a mais branca das mulheres brancas, mas acaba questionando o propósito da mudança.
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Row deve algumas das suas próprias perguntas sobre o assunto ao tempo em que era professor em Hong Kong na década de 90. Ele disse que estava em um lugar onde se sentia invisível, e onde os brancos recebiam apelidos pejorativos em cantonês que poderiam ser traduzidos como “fantasma” ou “demônio”.
– Essa experiência fundamental de me sentir tão deslocado e tão desestabilizado realmente definiu todo meu trabalho – afirmou ele, que é budista praticante e vive em Manhattan com a esposa e dois filhos. Seu livro de contos de 2005, “The Train to Lo Wu”, se passa em Hong Kong e apresenta personagens de diferentes origens contando histórias. Seu livro de 2011 sobre o 11 de setembro e suas consequências, “Nobody Ever Gets Lost”, usou uma técnica semelhante.
– Pensei em todas as vezes que me senti atraído por uma determinada identidade racial: ouvir hip-hop, ler livros sobre reservas indígenas americanas ou estar em um templo budista”, Row disse sobre a experiência de escrever “Your Face in Mine”.
– Outra coisa foi ver as pessoas à minha volta e todas as formas de adaptação racial que mascaram uma identidade. Algumas são sutis, como alguém que começa a praticar ioga e passa a usar o terceiro olho indiano. E há os brancos que adotam aspectos da cultura hip-hop, as roupas, o discurso. Às vezes isso ocorre graças ao desejo de se sentir mais próximo dos afro-americanos, ele disse, ou para fugir do que significa ser branco – ele concluiu.
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Se uma mudança dramática é necessária para unir pessoas ou para ajudá-las a lidar com seus demônios raciais, então Martin pode ter razão.
– Eu queria imaginar o tipo mais radical de integração: aquele que não pode ser desfeito – Row disse.