Nina Simone achava que era a reencarnação de uma princesa egípcia. Seus fãs não precisavam dessa informação para reverenciar a cantora tampouco a escritora Nadine Cohodas, que, mesmo assim, batizou sua biografia, recém-lançada nos EUA e ainda sem previsão de chegar ao Brasil, de Princess Noire The Tumultous Reign of Nina Simone (Pantheon Books, 464 páginas, US$ 30).

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As credenciais da biógrafa garantem a seriedade da pesquisa. Antes de Nina Simone, ela escreveu a biografia de outra diva do jazz, Dinah Washington (Queen: The Life and Music of Dinah Washington), sendo também autora da história de uma lendária gravadora de blues, a Chess Records. Em Princess Noire, Nadine tenta ser discreta ao acompanhar a evolução da bipolaridade da grande cantora, que morreu, em abril de 2003, aos 70 anos, de um câncer no pulmão, diagnosticado dois meses antes. Acontece que Eunice Waymon (seu nome verdadeiro) teve uma vida nada discreta. Há, portanto, uma dissonância que perturba a intenção da biógrafa, a de dissecar – sem os instrumentos corretos de um psicanalista – essa personalidade perturbada, algo esquizofrênica, megalomaníaca e dada a acessos de agressividade.

Criada durante a Grande Depressão em Tryon, na Carolina do Norte, numa família de oito irmãos e pai pastor metodista, a idiossincrasia estilística de Nina Simone rivalizava com a pessoal. Quando criança, foi aluna de uma professora inglesa de piano, Muriel Mazzanovich, que a obrigava a tocar Bach sem parar. Miss Mazy, como Nina a chamava, era uma espécie de Maggie Smith no filme A Primavera de uma Solteirona, uma professora que ensinava às alunas o que seus pais jamais ousariam aprender. Assim, Eunice Waymon adotou-a como sua “mãe branca”. Como seus pais não podiam pagar pelas aulas, foi criado em Tryon uma espécie de fundo para custear seus estudos. Miss Mazy, então, preparou a aluna para seu primeiro recital, em 1944, aos 11 anos, no auditório da Biblioteca Lanier, de Tryon. Foi o estopim do trauma que a acompanhou pelo resto da vida.

Os pais vestiram-se como se fossem para a igreja e sentaram-se na primeira fila. Ao entrar no palco, a futura Nina, furiosa, observou que eles haviam sido deslocados para o fundo da sala. Encarou a plateia e pediu aos organizadores que instalassem os pais num lugar onde pudesse vê-los. Constrangidos, os anfitriões cederam ao pedido, contrariando as leis locais, que garantiam aos brancos os melhores lugares.

Anos mais tarde, os que assistiram às frequentes provocações da cantora ao público durante os concertos, como a de interpretar seu hino de guerra Mississippi Goddam, passaram pelo mesmo teste de resistência aos impropérios lançados aos brancos. Estava lançada a semente da bipolaridade de Nina, uma intérprete de reconhecida sensibilidade, que chegava ao extremo de agredir seu público, dizendo que não precisava do amor dos fãs, mas de dinheiro para viver.

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De fato, como conta sua biógrafa, ela foi explorada por agentes, empresários, gravadoras. Vingava-se na hora de pagar as contas. Deu calote em locadores londrinos, numa clínica suíça, no American Express e acumulou uma dívida com o Imposto de Renda americano que chegaria, nos dias de hoje, a quase US$ 500 mil, o que explica seu exílio voluntário em Barbados e na França, onde morreu. Nina gostava de vestir roupas de grife e tomar a champagne Cristal Louis Roederer. E isso custava muito, muito caro (uma garrafa de Cristal de uma boa safra não sai por menos de US$ 500). Ainda assim, apresentou-se regularmente nos EUA nos anos 1970 e 1980, graças a um acordo com o Leão americano e à interferência de advogados, obrigados a representá-la como Dra. Simone – ela insistia na “doutora”, por ter estudado música erudita na Julliard School, frustração maior, uma vez que não conseguiu se tornar uma pianista clássica. E, mais uma vez, culpou os brancos, alegando ter sido rejeitada no exame de admissão no Curtis Institute of Music, aos 18 anos, por ser negra.

O sentimento de injustiça pessoal perseguiu Nina Simone a vida toda, mesmo quando já era uma diva, adorada por fãs – brancos e negros -, dispostos a pagar uma fortuna para vê-la cantar apenas seis músicas – como no seu último concerto no Carnegie Hall, em 2001. O organizador George Wein pagou a ela um cachê de US$ 85 mil, cobrando US$ 100 por ingresso. Ninguém reclamou.

– Ela era adorada como uma deusa e havia se transformado num ícone – diz o empresário.

Não foi a mesma opinião do crítico Gene Santoro, do Daily News. Para ele, aquela havia sido uma noite em que Wein “tentou erguer Roma de suas ruínas”. Afinal, no fim da carreira, a voz não era mais a mesma e Nina dava sinais de distúrbio de personalidade, tropeçando nos fios do microfone, falando com a voz empastada e deixando a alça do vestido cair como uma decadente diva de melodrama hollywoodiano.

A última diva

Por Luiz Zini Pires

Nina Simone usava seu timbre áspero com raiva, a indignação natural que pontua cada linha do gospel, soul, blues, jazz e folk. Ela queria ser pianista clássica. Aproximou-se do microfone para sustentar a família. Mississipi Goddam, um dos seus hits, lembrava o assassinato de quatro crianças negras no Sul racista dos EUA. Pulou do coro da igreja ao cabaré, passou pelos protestos de rua. Jamais escolheu palco, cantou Gershwin, experimentou George Harrison, emprestou sua sublime My Baby Just Cares For Me a um perfume da Channel, musicou poemas em homenagem ao Movimento dos Panteras Negras.

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Seu melhor CD, que eu recomendo de pé, com aplausos, chama-se After Hours, traz a sacerdotisa do jazz nos anos 1960, no auge, e exibe uma cantora múltipla, esgrimindo com o injusto mundo que a cerca, mas, ao mesmo tempo, apaixonada pelos amores possíveis e impossíveis que sempre a tocaram.