Cortaram a luz e o telefone na concentração do Boca Juniors. E o novo chefão da La Doce – a torcida organizada do Boca – acomodou um revólver sobre a mesa de pingue-pongue.

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Rodeado de comparsas armados, exigiu duas coisas dos jogadores: que ganhassem do Estudiantes e, o principal, que passassem mais a bola para “o garoto”. O garoto era Diego Maradona, com 20 anos em 1981.

Ninguém era louco de contestar El Abuelo, recém-sagrado líder da barra brava do Boca, a torcida mais violenta – e mais poderosa – da Argentina. Nem mesmo a polícia. Nem mesmo a Justiça. Episódios como a invasão relatada acima recheiam o livro La Doce, do jornalista argentino Gustavo Grabia.

Munido de um cipoal de dados e entrevistas, Grabia disseca a trajetória de terror envolvendo a torcida organizada do Boca Juniors. Não há momento mais oportuno para a publicação: embora a barra brava do Boca seja um ícone de violência, a letargia histórica das autoridades contribui para a disseminação do pavor entre as torcidas na Argentina.

Na segunda-feira passada, um torcedor de 21 anos do River Plate foi esfaqueado e morto. Dias antes, dirigentes do mesmo clube foram achincalhados por fanáticos armados que exigiam o retorno à Série A. Já o meia Moreno, do Racing, sentiu no joelho um revólver pressionando por melhor campanha no campeonato. E o vice-presidente do Independiente renunciou após ameaças de morte.

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Até atingir esse pico de fúria, o futebol argentino conviveu por décadas com uma impunidade aviltante. No início dos anos 1980, quando Abuelo assumiu o comando da barra brava – seu grupo tomou na pancadaria a liderança de Enrique Ocampo, que atendia pelo sugestivo apelido de El Carnicero -, a La Doce (A Doze) já chefiava uma máfia lucrativa.

Até hoje os dirigentes do Boca, para frear a oposição violenta da torcida, aceitam ceder uma cota de ingressos para a La Doce revender. Mas Grabia entra fundo no funcionamento do esquema: há quase 40 anos os barra bravas já extorquiam os vendedores de comes e bebes da Bombonera e faturavam com o estacionamento nas ruas adjacentes. Quem não pagasse, apanhava. Ou morria. Matar, aliás, sempre fez parte da ostentação de poder da La Doce.

– Sua gente poderia arruinar ou levantar uma partida. Assim, sempre que eles tinham algum pedido, eu os atendia com muito gosto – reconheceu o secretário-geral do Boca Juniors nos anos 1970, Luis María Bortnik.

Àquela altura, a Polícia Federal já entendia que era melhor ter a La Doce como aliada. Sucedia-se, então, uma série de omissões covardes enquanto torcedores rivais morriam espancados, esfaqueados ou alvejados por tiros. E os políticos da Argentina corroboravam a vista grossa.

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Grabia conta que o presidente Carlos Menem, em 1993, pagou US$ 5 mil à La Doce, com verba federal, para a torcida desfraldar durante o ano inteiro na arquibancada a faixa “Erman para a Capital”. Ex-ministro de Menem, Erman González era o candidato do presidente a deputado nacional. Na época, membros da cúpula da barra brava, que já haviam erguido faixas durante a campanha de Antonio Cafiero para o governo de Buenos Aires, encheram os bolsos e trocaram de carros.

Se há um defeito em La Doce, ele se limita à tradução truncada de Renato Rezende. Tradução eficiente dessa violenta história está na análise de Rafael Di Zeo, chefe da torcida a partir dos anos 90, repetida no livro: “Esta é uma escola. É herança, herança e herança.”

Confira entrevista com Gustavo Grabia autor de “La Doce”

Editor do diário esportivo argentino Olé, Gustavo Grabia levou quatro anos para reunir as informações do livro La Doce, sobre a violenta torcida do Boca Juniors. Grabia, 44 anos, falou a ZH e lamentou a recente “argentinização” das torcidas de Grêmio e Inter.

Zero Hora – Como os líderes da barra brava citados em seu livro receberam suas revelações?

Gustavo GrabiaAlguns gostaram muito, outros me ameaçaram. Fernando Di Zeo ficou zangado porque, no livro, digo que o chefe da torcida (até meados dos anos 2000) era o irmão dele, Rafael Di Zeo. Ele ficou com o ego ferido, já Rafael adorou. Outro barra brava, o Paquinco, me ameaçou de morte inúmeras vezes. Gravei uma ligação dele e falei que levaria à Justiça. Ele parou.

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ZH – Aqui no Rio Grande do Sul, de 10 anos para cá, percebe-se uma “argentinização” das torcidas. Isso é bom ou ruim?

Grabia Muito ruim. No México também copiaram as barras bravas argentinas. O resultado, atualmente, é um problema grave de violência. Há duas décadas, no México, o futebol era uma festa onde todos se reuniam. Isso acabou. O modelo das barras bravas é péssimo porque seus líderes vivem disso, não trabalham, ganham a vida com negócios ilegais patrocinados pelos clubes.

ZH – O senhor defende o fim das torcidas organizadas?

GrabiaSó neste ano, em apenas seis meses, nove pessoas morreram na Argentina em confrontos de torcidas. A sociedade suplica ao governo que acabe com as organizadas. Mas é difícil que isso ocorra, porque todos os governos – inclusive o de Cristina Kirchner – usam as torcidas como cabos eleitorais. Na minha opinião, as organizadas deveriam ser proibidas no mundo inteiro.

ZH – Mas não há o lado bom das torcidas? Elas comandam espetáculos, empurram os times.

Grabia Isso tudo é verdade, há manifestações bonitas. Mas esses espetáculos não justificam nenhuma morte. Prefiro menos espetáculos e mais pessoas confiantes de que poderão torcer e sair vivas dos estádios. Prefiro um futebol mais democrático.

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SERVIÇO

La Doce – A Explosiva História da Torcida Organizada mais Temida do Mundo

De Gustavo Grabia

Jornalismo. Tradução de Renato Rezende.

Panda Books, 192 páginas, R$ 37,90.