Adentrar o universo mágico, e ao mesmo tempo misterioso, das crianças não é tarefa fácil. Saciar sua inesgotável curiosidade sobre o mundo, tampouco. Perguntas filosóficas, como “o que existe após a morte?” e “quem decide o que é certo”, ou mesmo constrangedoras, do tipo “de onde vêm os bebês?” ou “por que os namorados gostam de se beijar na boca, se eu acho isso nojento?” têm o poder de deixar até os pais mais experientes em uma situação embaraçosa.

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No livro Como Ouvir as Crianças (Dis-moi pourquoi?, original em francês), a psicanalista e especialista em psicanálise infantil Claude Halmos reúne uma série de questionamentos, e suas respectivas respostas, enviados pelos pequenos a sua coluna na revista francesa Psychologies. Com o objetivo de ajudar os pais a descobrir a melhor maneira de estabelecer contato com os filhos e a compreender seus sentimentos e inquietações, a autora se propõe a buscar uma fala “à altura da criança”, que não a infantilize excessivamente.

Abordando temas delicados como identidade, amor, ódio e separação, a obra é destinada a todos os que, de uma maneira ou de outra, envolvem-se na árdua missão que é educar. Além disso, apresenta, em uma linguagem acessível e clara, os principais assuntos que devem ser discutidos com as crianças, e aqueles que devem ser evitados. Entender a importância do diálogo e da conversa com os pequenos é o ponto-chave por trás da obra. Confira a entrevista com a escritora.

Vida: Sabemos que o diálogo é necessário, mas por que, no caso das crianças, não podemos e não devemos ignorá-lo? Qual é a importância para a educação das crianças?

Claude: A palavra e o diálogo são importantes não apenas para a educação das crianças, mas também para a formação da visão de mundo delas como pessoas. Tudo lhes é desconhecido: elas acabam de chegar ao planeta, estão perdidas e ignoram o que acontece ao redor delas. Por isso, é necessário que todas as coisas lhes sejam explicadas: o dia, a noite, as estações do ano, a cidade etc. A educação delas não pode ser construída sem a conversa, pois precisam que os pais expliquem as leis e convenções do mundo (como não matar, não agredir e não roubar os outros) para aprender a respeitar e para que sejam punidas se assim não o fizerem.

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Vida: Por que é essencial, e difícil ao mesmo tempo, encontrar a maneira “certa” de falar com as crianças?

Claude: Dirigir-se às crianças é difícil porque navegamos sempre entre duas armadilhas: falamos com elas como se fossem seres inferiores que não seriam capazes de compreender aquilo que dizemos, ou as tratamos como adultos, com o risco de que isso comporta de fazê-las crer que elas são verdadeiramente adultas. É preciso se dirigir a uma criança como a uma pessoa capaz de entender, mas que é… uma criança.

Vida: Existe uma forma padrão que é mais eficaz e mais adequada para falar com as crianças? Há frases ou palavras que devem ser utilizadas e outras que devem ser evitadas durante a conversa?

Claude: Não existe um método padrão para conversar com os pequenos. Cada adulto deve dialogar como pode, com as palavras que lhes vierem à mente no momento e sem medo de “dizer algoerrado” ou de “fazer mal” a elas. Se falamos clara e diretamente, a criança entende, de fato, que a consideramos uma pessoa e que pensamos que ela é capaz de compreender e que a respeitamos por isso, o que, para elas, é essencial. A partir daí, se ela não entender alguma coisa, se sentirá à vontade para perguntar.

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Vida: Você aponta um paradoxo interessante: hoje, a criança é o centro do mundo, mas, na realidade, nós não a escutamos realmente. O que podemos fazer para superar isso?

Claude: Ela está frequentemente no centro de tudo como um objeto fetichizado, e não como uma pessoa. Deixamos que faça tudo o que quer, damos tudo o que deseja, concordamos e aceitamos todos os seus direitos. Seria necessário, para a considerarmos como verdadeira pessoa que é, que mostrássemos que ela possui, como todo ser humano que vive em sociedade, os mesmos deveres que os outros.

Vida: Quais são as queixas que as crianças costumam fazer quando não podem falar com seus pais?

Claude: Uma criança que não conversa com seus pais não consegue compartilhar os seus sentimentos mais profundos e importantes de forma adequada, não consegue ter consciência do seu valor como pessoa (e por isso se sente desvalorizada e menosprezada). Ela não pode desenvolver realmente sua inteligência porque, para isso, é necessária a troca e a interação com os outros. Ela acaba não aprendendo a comunicar o que pensa e o que sente. Permanece fechada em si mesma e não se desenvolve como poderia, como uma flor privada de água e luz. Podemos observar isso nitidamente com as crianças pequenas. Um bebê com o qual conversamos e um bebê que não dialoga são muito diferentes. O primeiro é esperto e atento, pronto para comunicar, o outro, apático e indiferente.

Vida: Quais são os problemas mais difíceis de lidar com as crianças e quais questões normalmente são feitas por elas com mais frequência?

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Claude: As perguntas que devem sempre ser respondidas para as crianças são aquelas que concernem a elas diretamente: filiação, divórcio dos pais (eventualmente), doença ou morte de familiares ou pessoas próximas. Elas precisam também, a partir dos dois anos e meio ou três anos, receber as primeiras informações sobre a sexualidade: as diferenças de gênero, a concepção (e o papel desempenhado pelo pai nesse contexto), a gravidez e o parto. Precisam conhecer as proibições que regem a sexualidade humana, como o incesto, o sexo entre adultos e crianças, o estupro e outras violações. Precisam também, quando a descobrem e se confrontam com ela, que os pais lhes expliquem o que é a morte. Por fim, elas precisam que os adultos aplaquem algumas de suas angústias, afinal, detestar a irmã caçula não é um crime.

Vida: Quando os questionamentos das crianças não são respondidos pelos pais – os quais adiam a conversa ou se recusam a falar – as crianças podem muito bem buscar informações em outras fontes e com outras pessoas. Quais são as consequências disso?

Claude: Quando os pais não respondem, é bom que os filhos se dirijam a outros adultos. Apesar disso, frequentemente eles não ousam fazê-lo por pensarem que, já que seus pais não responderam, isso significa que a vontade de saber e a curiosidade delas estão erradas. Algumas crianças, por meio de uma experiência, bloqueiam em si mesmas a curiosidade, a vontade de saber e conhecer e, assim, prejudicam sua formação.

Vida: No livro, você diz que, às vezes, deve-se impor limites às crianças para ensiná-las a respeitar as leis e a hierarquia familiares. Como saber o momento certo para fazê-lo e como? Há coisas que não podem saber de qualquer forma e que os pais não devem dizer a elas?

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Claude: Uma criança deve saber qual é o seu lugar: ela é uma criança, não um adulto. Ela é filho ou filha de seus pais, não seu amigo ou amante. Ela deve saber, portanto, que serão respondidas todas as perguntas que dizem respeito a ela, mas o restante (aquilo que concerne aos problemas dos adultos, à vida do casal) não será revelado, pois não se refere a ela.

Vida: Quais os erros mais comuns que os pais cometem ao tentar responder às perguntas dos filhos?

Claude: Os “erros” dos pais relacionam-se a isso: eles podem contar aos filhos coisas que não se referem a eles, confidenciar-se com eles ou esconder dos pequenos certas coisas que lhes dizem respeito, ou ainda mentir ao dizer, por exemplo, que a avó foi viajar quando, na verdade, ela morreu.

Vida: Você pode nos contar um pouco da sua experiência para o projeto “Correio das Crianças” na revista?

Claude: Penso que o “Correio das Crianças” conseguiu mostrar aos pais que as crianças têm perguntas a fazer que são diferentes daquelas dos adultos, mas também importantes e sérias da mesma maneira. Além disso, que podemos dirigir-nos a elas de forma adequada, sem as considerar adultas ou incapazes. Não existe um psicanalista que possa fazer isso: é a tarefa dos pais.

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Fica técnica

Como ouvir as crianças – e responder às suas perguntas mais difíceis

Claude Halmos

Zahar, 1ªed, 2014

184 páginas

* Zero Hora