Não consigo dormir de meia. O pé frio de Ana procurava uma brecha entre o cobertor e o pijama de flanela de Jorge, abria caminhos, buscava o calor. Não se falavam há quatro horas, depois de uma discussão sobre a troca da geladeira. Era assim quase todos os dias. Deram-se bem durante os primeiros cinco anos. Até riam dos problemas cotidianos. Tiravam de letra.
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Mas aí tiveram de ter uma conversa séria, importante, que definiria seus futuros. Jorge queria ser pai, sonhara com isso desde a morte do avô materno, um exemplo de afeição masculina. Tinha sugestões de nomes, projetou os móveis do quartinho com o que havia aprendido até desistir da Arquitetura no segundo ano. Ana prorrogou o quanto pôde, dizia sempre “No ano que vem. Vamos primeiro…”.
Acabar o mestrado, acabar a reforma da sala, acabar de pagar o carro, acabar de fazer todas as viagens que sonhamos. Acabaram-se em gestos e gritos, em palavras ferinas, em golpes irreversíveis. Nos últimos tempos não falavam mais disso. Jorge desistira.
Ana também. Só não conseguiam desistir um do outro por completo, amarravam-se ao passado, ao que viveram. Não falavam mais de quase nada. Brigavam por tudo. Mas, nas noites frias, sob a coberta, seus pés se encontravam.
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Não havia mais carinho entre seus corações e seus corpos. Distanciaram-se demais. Só mesmo o inverno para aflorar um resquício de afeto do que foram um para o outro, e que nunca mais serão.