Se episódios como a Resistência Francesa tiveram militares na retaguarda (no caso francês, o general Charles De Gaulle comandava por telefone desde Londres os heróis da resistência), o Levante do Gueto de Varsóvia, que completou 70 anos na última sexta-feira, caracterizou-se por ser uma reação civil ao maior de todos os arbítrios: o nazismo.

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Eram homens martirizados física e emocionalmente que enfrentaram as forças armadas alemãs.

A ousadia liderada por Mordechai Anilewicz, 24 anos, é um exemplo de inconformidade. Entre 1939 e 1942, os nazistas confinaram judeus em guetos. Amontoavam-se, em Varsóvia, 380 mil pessoas (30% da população) em 2,4% do território da cidade. Revoltados contra a indignidade, 80 mil sobreviventes (300 mil foram levados para o campo de extermínio de Treblinka) passaram a atirar bombas contra patrulhas alemãs a partir de becos, janelas e esgotos. Foi tão simbólica a insurreição, que seus efeitos ainda se fazem sentir. Na última quarta-feira, o Instituto Polonês de Memória Nacional apresentou 31 relatórios elaborados entre 20 de abril e 16 de maio de 1943 pelo comandante alemão do gueto, o general Jürgen Stroop, sobre sua liquidação.

A Polônia iniciou uma série de cerimônias para marcar a data. “O levante do gueto de Varsóvia foi o primeiro passo de uma revolta urbana contra o ocupante nazista na Europa. Sem possibilidades de êxito, foi um ato desesperado de escolher uma morte digna com as armas na mão, assim como uma oportunidade para obter revanche dos opressores”, define texto da prefeitura de Varsóvia. Haverá uma cerimônia na única sinagoga que sobreviveu à II Guerra Mundial na capital do país e um concerto no Monumento aos Heróis do Gueto. Na noite deste domingo, será organizada uma “parede humana de recordação” no local em que ficavam os muros do gueto, dos quais restam apenas vestígios.

Em Porto Alegre, no dia 24, às 19h30min, a entidade beneficente Na’amat Pioneiras fará o painel O Dever da Memória: 70 Anos do Gueto de Varsóvia, na Federação Israelita do Rio Grande do Sul (Rua João Telles, 329 – térreo) – os ingressos são dois quilos de alimentos não perecíveis. Os palestrantes serão o historiador Voltaire Schilling e o psicanalista Abrão Slavutzky (leia entrevistas abaixo).

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Os combates prosseguiram até 16 de maio. Depois de esmagar a revolta e os revoltosos, buscando-os casa por casa, os nazistas destruíram o bairro.

Abrão Slavutzky, psicanalista: “Foi um marco na História”

Zero Hora – Como o Levante influenciou a humanidade?

Abrão Slavutzky – Foi a primeira revolta civil contra o nazismo. O povo judeu, desde sua expulsão de sua terra, Israel, há 1,9 mil anos, na diáspora, não teve armas nem experiência de luta armada. Foi difícil de convencer a população que o Levante era o caminho da dignidade diante dos campos de extermínio. Liderada por jovens, a reação foi pela dignidade humana, pela honra. O Levante é um marco na História da humanidade como foi aqui o Quilombo dos Palmares, a revolta contra a escravidão. Não faltam exemplos de povos lutando pela liberdade e dignidade. No manifesto que lançou o ZOB, as siglas da Organização dos combatentes judeus, em janeiro de 1943, está escrito: “Se somos muito fracos para defender nossas vidas, somos fortes para defender a honra judaica e o valor humano”.

ZH – Que mensagem ele traz?

Slavutzky – Há uma luta entre a tolerância e a intolerância, seja de governos como o Irã e a Coreia do Norte, seja de grupos terroristas. A simpatia que a crueldade pode despertar é destrutiva para se sonhar com uma humanidade mais justa e humana. A mensagem que se pode extrair do Levante do Gueto de Varsóvia é de como devemos estudar e aprender sobre a história da crueldade humana e assim resistir a ela. Pensadores como Jacques Derrida e Zigmunt Bauman chamaram a atenção sobre a violência da intolerância. Resistir é o que devemos fazer, seja na relação com os demais, seja apoiando iniciativas como a Comissão da Verdade aqui no Brasil. O que se pode aprender com a tragédia que exterminou 6 milhões de judeus, milhares de ciganos e homossexuais é perceber o quanto não devemos ficar indiferentes.

Voltaire Schilling: “Iniciou a derrocada nazista”

Zero Hora – Depois da revolta judaica, outros episódios de rebeldia ocorreram mundo afora. Houve algum tipo de inspiração? Qual, enfim, foi a importância histórica do levante do Gueto de Varsóvia?

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Voltaire Schilling – A importância do Levante do Gueto de Varsóvia é que ele anunciou uma série de outras insurreições urbanas antinazistas, tais como o Levante de Nápoles (em 28 de setembro de 1943), o de Varsóvia (a partir de 1 de agosto de 1944, que muitas vezes é confundido com o próprio levante ocorrido no gueto) e o Levante de Paris, (que começou em 20 de agosto de 1944). Sua característica é que não foi obra de guerrilheiros, mas sim dos habitantes civis que lá se encontravam confinados desde 1940. De certo modo, foi a reprodução da resistência dos antigos hebreus feita em Massada contra os romanos (em 66-72 d.C.)

ZH – O que esse episódio de insubordinação, que foi considerado a primeira resistência civil contra o nazismo, mudou na história da humanidade?

Schilling – O que se pode dizer é que o Levante do Gueto foi uma versão civil, ainda que não bem sucedida, da batalha de Stalingrado (encerrada 46 dias antes do Levante). Esta batalha marcou o início da derrocada nazista na Europa, visto que havia no gueto bem poucos com preparação militar. Projetou-se também como um exemplo à humanidade. Por vezes resistir com qualquer meio – como fez a gente do gueto – é melhor do que simplesmente deixar-se matar.