O escritor Maicon Tenfen acaba de entregar para a editora Biruta a sequência de Quissama – O Império dos Capoeiras, livro que já virou jogo de tabuleiro e foi finalista na categoria Juvenil no Prêmio Jabuti 2015.

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O escritor cedeu em primeira mão para a coluna um pedacinho da nova obra. Você lê abaixo um trecho do capítulo 2 de Território Inimigo (que também deve virar boardgame nas mãos de Ricardo Spinelli). A previsão de lançamento é para o segundo semestre.

Os dois livros já devem figurar em abril no catálogo que a agência literária VBMLitag leva para a Feira do Livro de Londres, em abril. O objetivo é negociar possíveis traduções para o mercado europeu.

Boa leitura!

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Vitorino se esforçava para deixar claro que nutria um legítimo ódio por Herr Müller, fosse ou não o seu pai biológico. Detestava o comportamento servil dos antigos “irmãos de malta”, que chamavam o bandido de Ioiô e arriscavam a pele para resguardá-lo dos inimigos. Apesar de tudo, quando falava dos velhos tempos, o moleque se traía pelo tom de nostalgia – ou seria admiração? – que tomava conta da sua voz. O Alemão era um capoeira respeitado, o primeiro professor de Vitorino, o mestre que lhe ensinara os segredos e as artimanhas da ginga.

– O caso, Seu Daniel, é que não se pode vencer o maldito. – Quase conseguiste em dezembro.

– Ele caiu sozinho pra me poupar.

– Não foi o que pareceu.

– Vosmecê não entende de capoeiragem. Às vezes é o perdedor que sai ganhando.

Graças à minha incredulidade, Vitorino contou uma história para exemplificar o que estava dizendo. Quando tinha seis ou sete anos, Herr Müller o levou a uma taverna da zona portuária. Apesar de bem vestido, o Alemão gostava de se misturar à pior canalha do Rio de Janeiro. Costumava conduzir os escravos pela mão, se fossem crianças, sem medo de ser censurado ou ridicularizado. O local estava cheio de marinheiros noruegueses que zombavam a valer. Às gargalhadas, perguntaram se o Alemão poderia fazer um número com o chimpanzé amestrado que o acompanhava. Um ruivo de camisa listrada era o mais escandaloso nas manifestações de escárnio. É claro que o bandido não gostou das caçoadas, mas seria impossível sacar a navalha e vencer uma dezena de gigantes parrudos que certamente amavam as brigas de bar. O que ele fez? Disfarçou a raiva com um sorriso de cordialidade, suspendeu Vitorino nos braços e o colocou sentado na beira do balcão. O moleque ficou balançando as perninhas no ar.

“Como adivinharam?”, disse o Alemão aos noruegueses. “Sou o proprietário do Grand Circo Germânia que acaba de chegar à cidade. Vamos armar a lona na Rua do Regente. Vim aqui para comemorar. E a cerveja é por minha conta!”.

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Como previsto, os marujos aceitaram a bebida e logo esqueceram as piadas. O que eles não sabiam é que Müller jamais esquecia uma ofensa. Em dez minutos descobriu os nomes de todos os que estavam na taverna, inclusive do ruivo de camisa listrada, um certo Mikkel, a quem dedicou o melhor de sua atenção. Vitorino lembra que as rodadas continuaram até que a taverna começou a se esvaziar. Os homens foram voltando para o cais, menos o ruivo, que ficou entretido com a conversa amigável do Alemão.

Tarde da noite, quando restavam quatro pessoas no recinto – o taverneiro, o Alemão, Mikkel e Vitorino caindo de sono – Müller voltou ao assunto do Grand Circo Germânia.

“Queres assistir ao número com o chimpanzé? Aposto que nunca viste espetáculo igual”.

Mesmo bêbado, o marujo pressentiu o perigo e começou a se desculpar. O Alemão estava sóbrio, pois não bebeu um único gole em todo o tempo que passou com os noruegueses.

“Perdão!”, dizia Mikkel, tropeçando nas próprias pernas. “Eu não quis desrespeitar o senhor”.

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Herr Müller derrubou o coitado com uma rasteira de arranque. “Agora é tarde”, respondeu. “É a minha vez de desfiar anedotas. Mas não são exatamente para rir. Sugiro que não as escute!”

Montou o peito do marujo, travando-lhe os braços com a pressão dos joelhos, e segurou-lhe a cabeça com a mão esquerda. O pobre chorava e implorava clemência, mas o Alemão só fazia rir enquanto a navalha trabalhava. Deixou o abusado sem as orelhas. Depois segurou a mão de Vitorino e saiu tranquilamente da taverna. No dia seguinte, os outros marinheiros tiveram o mesmo destino de Mikkel, não pelas mãos do chefe, mas dos seus capangas, incluindo Tenório, que era moço na época. O taverneiro saiu ileso porque o Alemão queria que alguém espalhasse o caso pela cidade.

– Ele tem duas mil caras – concluiu Vitorino. – Sorri quando está em desvantagem, mas tripudia na hora da vingança.

Confesso que senti inveja de Herr Müller, provavelmente porque já estivesse me tornando uma figura paterna para o moleque. Não dava para competir com um criminoso que mandava e desmandava no Rio de Janeiro. Quando voltássemos do Paraguai, se é que voltaríamos com vida, era provável que o bandido viesse cobrar os resultados da viagem. Melhor que trouxéssemos Bernardina conosco. Caso contrário, não seriam as orelhas de Vitorino, suposto filho do Alemão, mas as minhas, tão necessárias e preciosas, que passariam pelo fio de uma navalha.

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