Guria, eu vou pra Montevidéu…

* Por Reinaldo N. Takahashi

Parodiando o título de uma antiga matéria da Folha de S.Paulo sobre o sempre polêmico tema de proibição ou legalização da maconha no Brasil, lanço a pedido do DC meu olhar de pesquisador sênior da UFSC sobre a histórica e surpreendente decisão da legalização do cultivo, comércio e uso recreativo da cannabis no vizinho Uruguai, se igualando à conduta de alguns países evoluídos, modernos e civilizados.

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Em 1996 o Estado americano da Califórnia decidiu em plebiscito o uso medicinal da cannabis e recentemente a liberação foi aprovada nos Estados do Colorado e Washington. Curiosamente, no geral os EUA continuam sendo um país extremamente proibicionista e legalista com a maconha. Enquanto isso, aqui na terra do Carnaval, samba-axé e Copa do Mundo, o Conselho Nacional de Políticas sobre Drogas está protelando a votação desde 2010 de uma proposta de criação de uma Agência Brasileira para Cannabis Medicinal para pesquisar e regulamentar os usos medicinais de derivados da maconha, preocupado talvez que isto provoque o liberougeral da erva no país.

No Uruguai, o presidente José Mujica e os políticos do Senado possivelmente tomaram a decisão pró-legalização da maconha convencidos da ideia da redução da violência causada pelo tráfico, redução dos danos à saúde, sem o temor da explosão de consumo e por que não na geração de receitas governamentais através da taxação do cultivo e venda da cannabis. É evidente que a decisão contou com oposição de vários políticos e parte da população local contra tal experiência, com o receio que o país se torne uma espécie de “cobaia” ou um centro de consumo da droga.

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Aliás, mesmo que o Uruguai seja um país pequeno, população em torno dos 3,3 milhões, com aspectos culturais, sociais e econômicos diferenciados dos demais hermanos do Cone Sul, precisa ficar claro que a tal estatização da produção e comercialização da cannabis será sim uma experiência corajosa, mas como tal sem prognósticos de sucesso ou fracasso total.

Assim, já no day after da decisão, as mais diferentes manifestações estão acontecendo; A mais ameaçadora veio da Junta Internacional de Fiscalização de Entorpecentes da ONU, lamentando a legalização e que a decisão viola as normas internacionais.

Outras manifestações oportunistas: consultas nas chancelarias uruguaias para se saber dos eventuais direitos de novos/futuros residentes no Uruguai e outros temores, como do governo brasileiro, com a influência do aval à droga no país vizinho; a possibilidade do turismo da maconha ou narcoturismo (novos free shops naturais?); tudo mais acessível geograficamente aos vizinhos gaúchos, cujos procedimentos aduaneiros certamente serão reformulados ou mais controlados, e os internautas de ocasião ironizando o limite reduzido de compra máxima de 40 gramas mensais da maconha ou da produção doméstica de somente seis mudas da cannabis – além do extremo da regulamentação estatal, todos os usuários devem ser cadastrados, isto é, Montevidéu vai ter um cadastro oficial de maconheiros.

Já pensou se a moda pega e todos os consumidores de álcool precisem do mesmo tipo de registro para o happy hour? A cannabis, ao longo de milênios também reconhecida por suas propriedades terapêuticas e seu uso medicinal, avança nos EUA, Canadá e em outros países.

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É crescente a literatura científica mostrando a eficácia da maconha no tratamento de glaucoma, asma, dor crônica, espasticidade, ansiedade traumática e dificuldades resultantes de quimioterapia, como náusea e perda de peso.

Como todo o medicamento já disponível, eventuais medicamentos canabinoides não devem funcionar com a mesma efetividade para todos os pacientes e podem induzir efeitos colaterais. E mais relevante ainda nesta conjuntura, o uso medicinal não deve ser assumido como um aval ou bandeira para a liberação ou legalização do uso recreativo para a maconha.

Lembrando que o chamado uso recreativo da cannabis continua crescente em diferentes países a despeito das legislações mais ou menos draconianas, das evidências recentes de seu potencial para a dependência, particularmente em jovens, e sua propensão para causar surtos psicóticos em pessoas suscetíveis, parece evidente a necessidade de uma discussão e implementação de nova regulamentação na política sobre o uso de drogas no Brasil, sem se influenciar na decisão do vizinho, sem posturas obscurantistas ou posicionamentos pautados em ideologias, usando enfim mais conhecimento e sabedoria e menos conflito de interesses.

Mas mesmo sendo pesquisador de uma área específica reconheço que o nosso país tem outras mazelas profundas e prioritárias como na educação e na assistência à saúde básica da população.

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* É professor titular do Departamento de Farmacologia/CCB da UFSC e pesquisador do CNPq