O escritor Laurentino Gomes lança dia 1º de agosto, em Florianópolis, o terceiro volume de sua trilogia sobre a escravidão. O livro é sequência dos volumes anteriores e se desdobra sobre o impacto da escravidão na formação do país e da sociedade em que vivemos hoje.

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“Escravidão – Da Independência à Lei Áurea”, é dedicado ao século 19, desde a Independência, passando pelos primeiro e segundo reinados; ao movimento abolicionista, que resultou na Lei Áurea de 13 de maio de 1888; e ao legado da escravidão, que ainda hoje emperra a caminhada dos brasileiros em direção ao futuro.

— A escravidão hoje não é apenas tema de livros de história. É uma realidade concreta no bicentenário da Independência, que coincide também com uma eleição decisiva na história da democracia brasileira. O assunto precisa urgentemente constar da agenda de todos os candidatos e partidos que tiveram planos sérios para o futuro do Brasil.

Paranaense de Maringá e sete vezes ganhador do Prêmio Jabuti de Literatura, Laurentino Gomes é autor dos livros “1808”, sobre a fuga da corte portuguesa de dom João para o Rio de Janeiro (eleito Melhor Ensaio de 2008 pela Academia Brasileira de Letras), “1822”, sobre a Independência do Brasil, e “1889”, sobre a Proclamação da República, além de “O caminho do peregrino”, em coautoria com Osmar Luduvico da Silva – todos publicados pela Globo Livros.

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Confira a entrevista:

Você tem dito ser impossível pensar o Brasil sem olhar para a escravidão, seja no passado, presente ou mesmo no futuro. O que nosso país vai ganhar quando ‘se olhar no espelho’?

Nós, brasileiros, precisamos urgentemente nos reconciliar com o nosso passado africano e escravista. O Brasil foi o território que importou o maior número de africanos cativos, cerca de cinco milhões no total, em 350 anos. Foi também o último a acabar com o tráfico, pela Lei Eusébio de Queirós, de 1850. E o último a acabar com a própria escravidão, pela Lei Áurea de 13 de maio de 1888. Aboliu a escravidão, mas abandonou a população negra e mestiça, descendente de africanos, à própria sorte. 

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Alguns dos grandes abolicionistas do século 19, como o pernambucano Joaquim Nabuco e o baiano André Rebouças, diziam que não bastava acabar com a escravidão. Era preciso também enfrentar o seu legado, dando terra, trabalho, educação e oportunidades aos ex-cativos e seus descendentes. Essa segunda abolição o Brasil jamais fez. 

Existe uma herança da escravidão entre nós, que inclui o racismo e a desigualdade social. Precisamos refletir sobre o que aconteceu no passado para entender como chegamos até aqui e também que decisões são necessárias adotar no futuro para corrigir os problemas acumulados ao longo dessa jornada.

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O que esta herança produziu entre nós?

O racismo produziu um sistema de castas na sociedade brasileira. Basta observar quem mora nas periferias insalubres, perigosas, dominadas pelo crime organizado, pelo tráfico de drogas, sem qualquer assistência do estado brasileiro. Na maioria, são pessoas afrodescendentes. 

Enquanto isso, os chamados “bairros nobres”, com boa qualidade de vida, segurança, serviços públicos e educação de qualidade, são habitados por pessoas descendentes de colonizadores europeus brancos. Estatisticamente, pobreza no Brasil é sinônimo de negritude. 

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Com raras exceções, quanto mais negra a cor da pele, mais pobre é a pessoa. No meu entender, só a persistência de uma ideologia racista, que recusa oportunidades a todos os brasileiros, independentemente da cor da pele, explica essas diferenças. Ou seja, o verdadeiro racismo não se expressa apenas com palavras e atitudes ofensivas, que a lei proíbe, mas na recusa em dar oportunidades às pessoas negras ou afrodescendentes de se realizarem plenamente como seres humanos. 

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Esse é o famoso racismo estrutural, enfronhado na nossa maneira de ser, de agir e de pensar. Uma segunda abolição significa enfrentar de forma corajosa e decisiva o problema da desigualdade social e da violência decorrente do racismo e no Brasil.

Em setembro teremos o simbólico marco dos 200 anos da Independência, e em outubro eleições. Como o tema escravidão perpassa esses dois momentos importantes do nosso país?

A escravidão hoje não é apenas tema de livros de história. É uma realidade concreta no bicentenário da Independência, que coincide também com uma eleição decisiva na história da democracia brasileira. 

O assunto precisa urgentemente constar da agenda de todos os candidatos e partidos que tiveram planos sérios para o futuro do Brasil. Muitas de nossas relações sociais e econômicas são de natureza escravista. São frequentes as denúncias de trabalho análogo à escravidão no país. 

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Depois da Lei Áurea, muitos ex-escravos continuaram a trabalhar para seus antigos senhores, morando nas mesmas senzalas de antes, sob as mesmas condições, agora apenas em troca de um minguado salário que mal dava para cobrir as despesas relacionadas à própria sobrevivência. 

Muitas famílias migraram para as periferias de cidades como Rio de Janeiro e São Paulo, dando início ao fenômeno das favelas que hoje marcam a paisagem das metrópoles brasileiras. Outra parte se constituiu em população móvel, flutuante, que se deslocava de uma região para outra de acordo com os períodos de plantio e colheita e as necessidades de trabalho sazonal.

Onde está esta segregação nos dias de hoje?

Infelizmente essa situação se mantém intocada. Quem tiver um olhar atento, pode observá-la na paisagem brasileira, nas estatísticas e indicadores sociais, onde a nossa população negra aparece como a parcela da sociedade com menos oportunidades e a que mais sofre com a violência e a desigualdade social crônicas no Brasil. Somos um dos países mais segregados do mundo, e isto sem necessidade de leis de segregação racial, como aquelas que existiram na África do Sul e nos Estados Unidos.

O país convive atualmente com um forte aparato, inclusive institucional, para apagar sua identidade, como é o caso da Fundação Palmares, a qual chegou a propor mudança do nome. Podemos concluir diante desta realidade que a mentalidade escravagista continua?

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O momento é muito desanimador. O atual governo é hostil ao estudo e à reflexão sobre o tema. Algumas falas do presidente e de seu até há pouco representante à frente da Fundação Palmares ecoam o discurso de supremacia branca e tendem a perpetuar antigas distorções a respeito do assunto. Mas não podemos desanimar. De um ponto de vista histórico, as coisas podem melhor no futuro. Obviamente, há um discurso revisionista e negacionista no ar, que complica muito o estudo e a reflexão sobre a herança escravista brasileira, incluindo seus traços mais perversos, como o racismo e a desigualdade social. 

Até muito recentemente, a história africana e da escravidão negra no Atlântico era tratada como tema secundário, quase casual, nos livros didáticos e a historiografia oficial. Isso não aconteceu por acaso. 

É resultado de um propósito de esquecimento. O projeto nacional de abandono e apagamento fez com que nossa história negra e africana fosse relegada a um segundo plano nos livros didáticos. E, não por acaso, nunca tivemos um grande museu nacional da escravidão e da cultura negra. Museus, como se sabe, não são apenas lugares de passeio e entretenimento. São locais de estudo e reflexão. 

Não ter um museu com esse perfil é, portanto, parte desse projeto nacional de esquecimento. Rediscutir nossa identidade nacional, o que inclui um reconhecimento da importância e do legado da escravidão, é um dos nossos desafios mais urgentes.

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Em um dos volumes da sua trilogia você fala do banzo que acometia os africanos escravizados dentro dos navios negreiros. Você pode falar um pouco sobre isso?

Banzo era o nome africano de um surto de depressão muito frequente entre os cativos. Alguém acometido por banzo parava de comer, perdia o brilho no olhar e assumia uma postura inerte enquanto suas forças vitais se esvaiam no prazo de poucos dias. 

No final do século 18, o advogado português Luís Antônio de Oliveira Mendes descrevia isso como “um ressentimento entranhado por qualquer princípio, como, por exemplo, a saudade dos seus ou de sua pátria, uma paixão da alma a que se entregam que só é extinta com a morte”. 

Era uma das causas da alta taxa de mortalidade a bordo dos navios negreiros. Morria-se de doenças, como disenteria, febre amarela, varíola e escorbuto. Morria-se de suicídio – escravos que, tomados pelo desespero, aproveitavam-se de um descuido dos tripulantes, subiam à amurada das embarcações e jogavam-se ao mar. Por isso, os navios negreiros geralmente eram equipados com redes estendidas ao redor do deque superior, para prevenir esses atos. 

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Os cadáveres eram atirados por sobre as ondas, sem qualquer cerimônia, às vezes sem ao menos a proteção de um pano ou lençol, para serem imediatamente devorados pelos tubarões e outros predadores marinhos. Segundo inúmeras testemunhas da época, mortes tão frequentes e em cifras tão grandes fizeram com que esses grandes peixes mudassem suas rotas migratórias, passando a acompanhar os navios negreiros na travessia do oceano, à espera dos corpos que seriam lançados sobre as ondas. Esses rituais eram parte da rotina a bordo.

Princesa Isabel (Lei Áurea, 13 de maio) e Zumbi dos Palmares (20 de novembro). Você observa alguma tendência em tornar estes dois personagens como sendo opositores e não dando a cada um o papel relevante no processo da luta contra a escravização?

Existe hoje uma guerra no calendário cívico nacional envolvendo essas duas datas importantes relacionadas à história da escravidão e seus protagonistas. De um lado, o Treze de Maio, dia da assinatura da Lei Áurea, pela Princesa Isabel, em 1888. De outro, o Vinte de Novembro, da morte do herói dos Palmares, em 1695. Qual delas seria mais importante e digna da reverência dos brasileiros neste início de século 21? A polêmica é menos trivial do que se imagina. 

Nela estão diferentes visões a respeito da história da escravidão, seus acontecimentos e personagens e o seu legado para as atuais e futuras gerações. Os defensores do Treze de Maio reverenciam a Princesa Isabel no papel que lhe foi atribuído no século 19 pelo jornalista e abolicionista negro José do Patrocínio: o de “Redentora” da liberdade dos cativos no Brasil. 

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Os aliados de Zumbi e do Vinte de Novembro, ao contrário, acreditam que a Lei Áurea foi apenas um ato de fachada da elite agrária branca e escravocrata brasileira, que até então defendera com unhas e dentes o regime escravagista. Por essa visão, a luta dos escravos brasileiros estaria mais bem representada pelo herói de Palmares e data de seu sacrífico nas matas de Alagoas. 

É uma guerra que ainda está longe da acabar e só vai se resolver pelo estudo da história da escravidão e pela maneira como vamos encarar esses personagens e acontecimentos no futuro. No meu entender, o problema não é o Treze de Maio, que foi, de fato, o coroamento da campanha abolicionista, a primeira grande campanha popular de rua na história do Brasil, da qual participaram brancos, negros e brasileiros de todas as cores. 

O problema é a narrativa branca do Treze de Maio, como se fosse uma concessão dos brancos em favor do negro, e não uma conquista de todos. Problema maior é o 14 de maio, o terrível dia seguinte, em que os ex-escravos e seus descendentes foram abandonados e esquecidos pelo restante da sociedade brasileira.

O brasileiro sempre se declarou um apaixonado pelo futebol. A elitização desse esporte contribui para a falta de consciência dos atletas, sejam pretos ou brancos, diante de assuntos referentes à igualdade racial?

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O racismo brasileiro é insidioso, cotidiano e estrutural e se manifesta das maneiras mais rotineiras. Injúrias raciais são muito comuns nos estádios de futebol, no calor de uma partida em que uma pessoa, muitas vezes, não mede as palavras e expressa sentimentos que, em situações normais, procuraria disfarçar ou esconder. 

O racismo é uma consequência histórica, resultado da escravização de milhões de africanos de pele negra, mas também uma forma de hierarquização de poder. Esta é uma das consequências mais profundas e duradouras da escravidão africana nas Américas: o nascimento de uma ideologia racista, que passou a associar a cor da pele à condição de escravo. 

Por essa ideologia, usada como justificativa para o comércio e a exploração do trabalho cativo, o negro seria naturalmente selvagem, bárbaro, preguiçoso, idólatra, de inteligência curta, canibal, promíscuo. Essa ideologia, no meu entender, permanece ainda hoje oculta nas formas preconceituosas de relacionamentos entre brancos e negros no Brasil.

Você disse que resistiu bastante à ideia de associar escravidão e genocídio. Mudou alguma coisa a partir da sua pesquisa?

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Durante algum tempo, resisti a aceitar a ideia de que o negro brasileiro tivesse sido ou ainda fosse vítima de um processo de genocídio. Para mim, lá no começo desta jornada, a palavra me parecia excessivamente forte, sempre associada ao extermínio de grupos inteiros de seres humanos, como o dos judeus e ciganos sob o regime nazista. 

Não me parecia razoável falar em genocídio negro, uma vez que cada africano embarcado no navio negreiro e cada um de seus sobreviventes no Brasil era um ativo econômico, na forma de mão obra barata e abundante para o sistema escravista. O lucro do fazendeiro escravocrata vinha da sobrevivência e não do extermínio dessas pessoas. Ao ler autores negros, como Abdias do Nascimento, no entanto, eu mudei de opinião. Embora não tenha havido uma política deliberada de extermínio, o resultado prático foi, sim, de aniquilamento. 

Quase dois milhões de seres humanos morreram na travessia do Atlântico a bordo dos navios negreiros. Outros milhões morreram precocemente no Brasil, onde a expectativa de vida entre as pessoas escravizadas era muito baixa. Além disso, genocídio nem sempre se resume ao extermínio físico de pessoas. 

Envolve também aspectos mais sutis de sua identidade, como a memória, a cultura, a língua, as crenças religiosas, a possibilidade de sobreviver e prosperar, de realizar os seus talentos e vocações, a ascender a postos de liderança, a empregos e posições de reconhecimento social. São coisas que o Brasil tem sistematicamente recusado à sua população afrodescendente. 

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Por essa razão, hoje tendo a concordar que existe, sim, um processo de genocídio negro em andamento no passado, no presente e, se nada for feito, também no futuro do Brasil.

Qual seu maior aprendizado a partir da imersão num tema tão sensível como a escravização de pessoas?

Para mim, a construção desta trilogia envolveu um grande aprendizado a respeito da história brasileira. Da chegada dos portugueses até o final do século 19, tudo aconteceu sob o espectro sombrio da escravidão. 

A independência, o nascimento e a construção do estado nacional brasileiro, a organização de suas leis e instituições, tudo teve como fio condutor a manutenção e a perpetuação do regime escravista. As consequências são visíveis ainda hoje em nosso país. Como resultado, hoje já não consigo observar a história do Brasil sem levar em conta a escravidão e o seu legado que persiste entre nós ainda agora. 

A escravidão foi e continua a ser o principal elemento formador para identidade nacional brasileira.

SERVIÇO:

O QUÊ: lançamento de “Escravidão –Da Independência à Lei Áurea” (Terceiro Volume)

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QUANDO: 1º de agosto, 19h

ONDE: Livrarias Catarinense, Beiramar Shopping, em Florianópolis