Nos bastidores do poder em Brasília, não há quem não conheça o advogado Antonio Carlos de Almeida Castro – ou Kakay, o apelido que criou para si mesmo e pelo qual prefere ser chamado. Aos 60 anos, o mineiro radicado na capital federal fez (e faz) fama e fortuna defendendo políticos e empresários encrencados com a Justiça. Só entre os denunciados na operação Lava-Jato são 18 clientes, em uma lista que inclui, pelos seus cálculos, dois presidentes da República (Sarney e Itamar), mais de 50 governadores, dezenas de ministros e uma infinidade de parlamentares. Apesar da fama, diz que não tem site do escritório, nem placa na porta. Os clientes chegam por indicação de colegas ou de ex-clientes.

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O que a freguesia tem de impopular, ele tem de bon vivant. “O advogado é, antes de tudo, um chato”, brinca Kakay no saguão do hotel em Florianópolis, onde esteve recentemente para um congresso. O requisitado profissional divide espaço com o apreciador de viagens, vinhos, poesia e música que, se não houvesse enveredado pelo Direito, gostaria de ser cantor. Tanto que se orgulha de ter vencido o concurso de calouros em um daqueles cruzeiros com Roberto Carlos, com o prêmio sendo-lhe entregue pelo próprio Rei. Confira os trechos principais da entrevista:

(Foto: Felipe Carneiro / Diario Catarinense)

O senhor defende vários acusados e se tornou um crítico notório de algumas práticas da Lava-Jato. Na sua opinião quais são os métodos mais questionáveis da operação?

Existem alguns pontos que são fundamentais. Primeiro, a banalização da delação premiada. É um instituto importantíssimo no combate ao crime organizado, mas, infelizmente, a forma com que foi utilizado dificilmente conseguirá fazer com que tenha força no Brasil. Porque há processos no país com 15 réus dos quais 13 são delatores. Existe um sistema de recall que é uma coisa impressionante. Costumo dizer que o Ministério Público (MP), através do recall, constituiu o maior programa de corrupção do país. O empresário pego em uma delação pode entregar um pouco do que sabe, devolver uma pequena parte do dinheiro que saqueou e, se for pego na mentira, ser chamado para um recall. É uma questão gravíssima.

Mas isso é exclusividade da Justiça brasileira?

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Da forma que está sendo feito pela Lava-Jato acaba sendo um excesso a mais. O recall virou prática. Além disso, há uma questão mais grave que a delação, que é a banalização da prisão preventiva. Tornou-se uma regra.

Em Santa Catarina, a Operação Ouvidos Moucos acabou levantando questões sobre a atuação da Polícia Federal e do Ministério Público. Houve abuso de autoridade?

Não tenho dúvidas de que nesse episódio específico houve abuso, sim. Mas o mais grave – claro que o caso tem o drama do suicídio (do ex-reitor Luiz Carlos Cancellier) –, é o clima punitivista que se criou no país. Esse caso não está enquadrado dentro da Lava-Jato, mas é fruto do clima que a operação criou no Brasil. Vivemos hoje em um país dividido. De um lado, estão os operadores da Lava-Jato; do outro, os críticos. A operação desvendou um sistema criminoso que ninguém poderia imaginar que existia com essa capilaridade, com essa sofisticação, mas, no afã de fazer justiça a qualquer custo, principalmente com essa pressão midiática muito forte, (os operadores) acharam que estavam tentando salvar o país. Eles foram até inteligentes ao fazer um maniqueísmo vulgar: quem está trabalhando na Lava-Jato é o bem, quem critica seus métodos é alguém que está contra a operação ou, pior, é favorável à corrupção.

Como os agentes deveriam ter atuado nesse caso da UFSC?

Como devem proceder todos os agentes públicos com a responsabilidade que têm: com respeito ao direito do cidadão, e sem execração pública. Na época medieval, se você queria punir alguém, você o punia em praça pública por duas horas. Hoje, há uma banalização que é muito potencializada porque você faz isso via imprensa. É essa banalização que a gente tem de enfrentar. A espetacularização do Direito Penal não pode existir. Esse drama que aconteceu em Santa Catarina com o suicídio do ex-reitor pode ser um momento de inflexão, de reflexão das pessoas.

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As sessões do STF são transmitidas pela televisão e os ministros têm, inclusive, assessores de imprensa. Isso colabora para essa espetacularização?

Começamos a ter esse problema com a criação da TV Justiça. Embora ela tenha uma importância enorme em alguns setores específicos – para discutir a questão homoafetiva, por exemplo, a TV Justiça tem a sua importância de dar maior proximidade da população com o Judiciário –, houve uma superexposição do Direito Penal. O momento atual é muito grave porque quando há um poder Legislativo extremamente fragilizado, com seus principais líderes sendo investigados (e eles têm que ser investigados, mas não uma investigação permanente), e um Executivo sem legitimidade, o Judiciário acaba ocupando um espaço com um ativismo judicial que é muito prejudicial ao próprio Judiciário. Hoje as pessoas na rua sabem o nome dos ministros do STF e não sabem o dos jogadores da Seleção Brasileira. Não que lá (no STF) estejam 11 craques, mas com essa superexposição estão ocupando um espaço que, no meu ponto de vista, extrapola o (espaço) que deveria ocupar um ministro do Supremo.

É possível compensar o prejuízo para alguém que é preso preventivamente e depois tem a inocência comprovada?

O Estado tem que ter a responsabilidade de saber que a prisão preventiva deve ser absoluta exceção, só quando realmente existem as previsões rígidas, legais para a prisão. No Brasil, a Lava-Jato usa a prisão preventiva até como forma de obter delações. Tem um procurador da República, Manoel Pastana, que disse em um parecer que a prisão era, sim, forma de obter delação, e até de forma jocosa: ‘Passarinho preso canta mais bonito.’ Quando se iniciam as diversas fases da operação, o MP, a PF convocam entrevistas coletivas e durante duas horas expõem o cidadão à condenação prévia e a uma condenação acessória sem previsão legal, que é a exposição da imagem. Fui dar uma palestra em Portugal e os professores lá não acreditaram que isso acontece no Brasil. Em diversos países, quando há uma investigação, o nome da pessoa não é divulgado antes da condenação, somente as iniciais.

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Isso ocorre por força da lei ou é um cuidado da Justiça?

Muitas vezes é lei, mas muitas vezes é apenas respeito pela dignidade. A execração pública em grande escala pode resultar no que aconteceu com o ex-reitor da UFSC. Os métodos fizeram com que houvesse uma execração pública de tal forma que ele não suportou. As pessoas comparam muito a Lava-Jato com a operação Mãos Limpas, na Itália. Só que leem a história até a metade, não toda. Na operação Mãos Limpas foram mais de 30 suicídios. Chegava um momento em que a humilhação era tanta, o uso de grupos apontando falsas acusações contra outros grupos, que a operação praticamente explodiu. E resultou num (Silvio) Berlusconi (ex-primeiro-ministro), que é o está acontecendo no Brasil hoje. Essa divisão do país entre o bem e o mal está fazendo surgir os ‘bolsonaros’ da vida.

Há mandados de prisão demais no Brasil mesmo com todos os recursos previstos pela Justiça?

No Brasil só existem dois tipos de prisão: em flagrante ou por ordem judicial. O que acontece é que tudo isso é usado para passar uma imagem de que a prisão deve ser a regra. Nada disso é por acaso. Eu defendi no STF, na Ação Declaratória de Constitucionalidade 43, a necessidade de que as pessoas não sejam presas obrigatoriamente após segunda instância. E houve uma crítica generalizada de que essa ação tinha o objetivo de fazer com que 15, 20 pessoas importantes da Lava-Jato não fossem presas. Não tinha nada a ver com a operação. O que pretendemos fazer é impedir que milhares de pessoas sem rosto e sem voz fossem levadas para um sistema penitenciário completamente falido, como no Brasil. A prisão não pode ser a regra.

Como fazer para que a opinião pública não confunda esse cuidado com impunidade?

As pessoas têm o mesmo discurso de impunidade no Brasil, mas é falta de visão, na realidade. Temos os maiores empresários do Brasil presos; o ex-ministro mais poderoso, que era o (Antonio) Palocci, preso; o Zé Dirceu ficou preso por muito tempo. O que as pessoas querem, que esteja todo mundo preso? É o furor punitivo, a mídia repressiva, a falta de visão do todo… O discurso da impunidade tem que ser revisto. Qualquer impunidade deve ser combatida. Mas o que é mais importante para uma sociedade que se pretenda democrática? O cumprimento dos princípios institucionais.

O senhor continua sendo chamado de petista?

Isso é um erro, mas não me incomodo. Nunca fui partidário, mas, pela minha proximidade com o Zé Dirceu, me colocaram esse rótulo de petista. Aécio (Neves) é meu amigo, só não fui advogar para ele porque temos divergências quanto à condução do processo. No governo Fernando Henrique, fui advogado de 17 ministros – nenhum petista, pode ter certeza (risos). No governo Lula, fui advogado de sete ministros. Teve um momento em que eu advogava para cinco presidentes de partidos diferentes.

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A pecha de “advogado dos políticos e poderosos” de alguma forma o incomoda?

Zero. Eu brinco dizendo que faço análise porque não sinto nenhuma culpa, ao contrário das outras pessoas (risos).

Ué, por que faz, então?

Para entender como é que possível viver sem culpa (risos). Mas tem uma coisa interessante. Primeiro, que as pessoas não sabem que 40% da minha advocacia é pro bono. Advogo para meninos ligados a movimentos sociais, ajudo na formação de um partido, a Frente Favela. Advoguei na época que havia excessos nas interceptações telefônicas. Ganhamos o habeas corpus que determinou limites para essa prática. Claro, quem me contratou foi um grande grupo de um empresário processado. Mas aquela decisão formou jurisprudência nacional. Hoje há uma criminalização da riqueza. Antigamente as pessoas iam presas por serem pretas, pobres, putas ou desempregadas. Lutamos muito para que isso deixasse de acontecer. Quem vai preso tem que ter a responsabilidade criminal definida. Hoje você tem a prisão obrigatória se a pessoa tiver poder ou dinheiro. É um excesso que não serve também.

Já se arrependeu de ter aceitado algum caso?

Não que me lembre. O que há são casos que peguei e depois achei que poderia ter feito diferente. Por exemplo, advoguei para o (Salvattore) Cacciola (dono do banco Marka, acusado de crimes contra o sistema financeiro). Quando ganhei o habeas corpus, ele saiu do país. Deixei o caso por causa disso. Mas talvez não precisasse, era um direito dele ir para a Itália.

Quais casos o senhor recusa sem sequer ouvir?

Não trabalho com quem faz tráfico de droga. Não trabalharia com muita facilidade com pessoas processadas por estupro. Mas eu pego muito pouco caso. Cada 20 casos que batem no meu escritório, pego um. Meu escritório é pequeno, somos poucos advogados. Mas, principalmente, só pego caso que eu ache que tenha uma boa defesa técnica e a que eu consiga me entregar visceralmente. Não advogo para um cara que esteja sendo execrado pela mídia nacional e depois vou criticar esse cidadão num bar, como eu vejo alguns advogados fazendo. Hoje também há uma criminalização do advogado. Parte do Ministério Público, parte da mídia quer colar no advogado criminal não só a ideia do crime que o cliente responde, mas como se houvesse uma mistura entre eles.

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Como uma cumplicidade?

Exato. Os casos que advogo são casos midiáticos. É preciso defendê-los também na mídia. O momento do Brasil é tão punitivo que grande parte da mídia se ocupa só da acusação. Só a acusação tem voz e vez. Então quando a defesa tem espaço para falar, ela tem que falar. Uma das grandes coisas que a advocacia criminal me deu foi voz.

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