Um levantamento inédito feito pela Defensoria Pública do Estado de Santa Catarina (DPE-SC) aponta que o Judiciário catarinense não tem seguido as recomendações mais recentes do Superior Tribunal de Justiça (STJ) para não considerar como prova para condenação por um crime o reconhecimento de suspeitos por meio de fotos. A prática, não prevista no Código Penal Brasileiro, é alvo de polêmica por, segundo especialistas, aumentar as injustiças e promover prisões de inocentes.
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O assunto veio à tona em nível nacional no último domingo (21), em reportagem do programa Fantástico que abordou casos de inocentes que foram presos com base unicamente no reconhecimento por fotos. Ou seja, vítimas ou testemunhas viram uma foto na delegacia e apontaram que aquela pessoa da imagem era o autor do crime, mesmo sem total certeza.
A partir de um caso em Tubarão, no Sul de Santa Catarina, julgado em 27 de outubro do ano passado, o STJ mudou o entendimento sobre esse tipo de situação. No julgamento, a sexta turma do órgão concedeu o habeas corpus ao preso que havia sido acusado de forma equivocada e estabeleceu novas orientações válidas para toda a Justiça brasileira. Na decisão, os ministros do STJ definiram que o reconhecimento fotográfico, por não estar previsto na lei, não é prova válida para fundamentar a condenação de um acusado. No máximo, o reconhecimento pode servir para iniciar uma investigação.
O entendimento do STJ deveria balizar as futuras decisões sobre casos desse tipo no Brasil, mas ainda não está sendo seguido. O levantamento feito pelo Cecadep (Centro de Estudos, de Capacitação e de Aperfeiçoamento da Defensoria Pública de SC), ao qual a reportagem do DC teve acesso, mostra que após a decisão de outubro, até o dia 1º de fevereiro, ao menos 26 condenações com base em reconhecimento por fotos foram julgadas em segunda instância em SC. Em nenhuma delas o desembargador responsável pela análise citou o entendimento do STJ. Nos 26 casos, apenas um dos réus foi absolvido.
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– Não estamos dizendo que todos são inocentes, mas ele [o reconhecimento por fotos] potencializa a injustiça. Essa prova é muito frágil, muito problemática. Está em desacordo com a lei, com os estudos científicos. Ninguém está de acordo em condenar várias pessoas, mas correr o risco de condenar inocentes – aponta o defensor público Thiago Yukio Guenka Campos, coordenador do Cecadep e autor do processo que motivou a decisão histórica do STJ em outubro.
O relatório mostra que o roubo é o crime em que o reconhecimento fotográfico é mais comum, sendo a condenação em 76% dos processos levantados nos últimos meses. Em todos os 26 casos analisados, a decisão de primeiro grau foi levada para a segunda instância (o TJ-SC), e em praticamente todos os casos a condenação foi mantida.
Não estamos dizendo que todos são inocentes, mas ele [o reconhecimento por fotos] potencializa a injustiça.
Para Yukio, surpreende que a decisão do STJ não tenha sido sequer citada em nenhuma das decisões recentes sobre o assunto:
– Existem várias hipóteses. Tem uma postura mais conservadora dos desembargadores de SC de não acolher imediatamente as decisões do STJ, é algo que a gente constata na prática. Outro ponto é que o STJ tem duas turmas, e uma delas decidiu esse caso emblemático e mudou uma postura histórica do tribunal. Dos 10 ministros, cinco se manifestaram. A quinta turma ainda não se pronunciou sobre o tema. Eles [os desembargadores] poderiam não acolher os recursos com base nesse argumento, mas não foi isso. Eles nem enfrentaram, nem mencionaram.
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O que diz o TJ-SC
Em nota enviada à reportagem, o Tribunal de Justiça de Santa Catarina (TJ-SC) afirmou que “desconhece o teor do referido levantamento efetuado pela Defensoria Pública do Estado de Santa Catarina, bem como a íntegra das decisões prolatadas pelos magistrados catarinenses”, e que, por isso, “fica inviável emitir qualquer opinião sobre o assunto”.
No entanto, o Judiciário catarinense ressalta que “os magistrados catarinenses são responsáveis e decidem de forma técnica, ou seja, não só de acordo com as suas convicções, mas, fundamentalmente, conforme as provas contidas nos autos”.
A nota termina dizendo que, “para eventuais insatisfações das partes”, existem os recursos judiciais que podem ser requeridos.
O caso que mudou a visão da Justiça
O entendimento sobre o uso de reconhecimentos fotográficos para a condenação mudou no STJ graças a um caso em Santa Catarina. Em 2018, um homem foi acusado e condenado pelo assalto a uma churrascaria em Tubarão, no Sul do Estado. Vítimas do crime indicaram, com base em uma foto, quem seria o autor do assalto, e a suposta identificação baseou a condenação.
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Conforme as testemunhas, o autor do assalto usava um capuz durante o crime, porém, a peça caiu várias vezes e tornou visível o rosto dele. Em liminar concedida em outubro do ano passado, o ministro Rogerio Schietti observou que as vítimas disseram que eram “ameaçadas para que não olhassem para os acusados”, o que poderia contradizer o reconhecimento do acusado.
No entanto, outro ponto foi fundamental para a mudança do caso: todas as testemunhas indicaram que o autor do crime tinha cerca de 1,70m de altura, enquanto o homem preso possuía 1,95m.
– O caso de Tubarão foi emblemático, e talvez foi a sorte do réu e da gente, que era justamente um caso em que a condenação foi baseada exclusivamente no reconhecimento fotográfico, e ele tinha 25 centímetros de diferença na altura do que as testemunhas falaram. Uma diferença grande, que não passa despercebida – relata o defensor Thiago Yukio, que atuou no caso.
Para exemplificar a diferença entre o autor do crime e o homem preso injustamente, os defensores chegaram a usar uma foto de jogadores de futebol. De um lado, Lionel Messi com 1,70m, do outro, Zlatan Ibrahimovic, com 1,95m.
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Além da defensoria pública, o caso no STJ que permitiu a absolvição do réu em Tubarão também contou com o trabalho da Innocence Project Brasil, associação sem fins lucrativos voltada a enfrentar questões sobre condenações de inocentes no país. Na defesa, a advogada da associação destacou números levantados nos Estados Unidos, apontando que de 375 casos de prisões de inocentes que acabaram sendo revertidas na Justiça, 69% tiveram como raiz da injustiça um reconhecimento equivocado.
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