Há uma promessa de lua e estrelas ao final da tarde. Vai lento o ônibus que leva a jovem flautista à sua apresentação; não é a primeira, mas é a mais importante. Compenetrada, repassa as notas mentalmente, enquanto dentro do bolso dedilha uma flauta imaginária. Na pasta, a partitura aguarda desafiadora, em sucessões de compassos, claves, armaduras, notas e acidentes. Da janela, vê passar um Fá Sustenido e descompassado que sobe e desce a calçada num trinado excêntrico. O semáforo indica um staccato em vermelho.

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Dois pontos antes do terminal rodoviário sobe um tremor. No banco do fundo, uma criança canta marcando o ritmo com palmas. A mãe sorri. Um senhor aciona a campainha, talvez um . O ônibus faz nova parada e a ansiedade da flautista aumenta. Um carro passa do lado com som altíssimo de uma música estranha, que segue rua adiante em diminuendo. Ela, então, volta a ouvir a melodia da peça de Vivaldi, desafio máximo, que dedilha na coxa. Desce no terminal central. Cai a noite sobre a cidade, a moça caminha num Allegro Moderato até que, a poucos metros do teatro, toma fôlego e troca o passo; seu caminhar agora é um Adágio.

A flauta brilha em suas mãos. A partitura, sisuda, descansa sobre a estante. Há movimentação dos músicos e burburinho na plateia. A respiração é ofegante e passa-lhe pela cabeça um breve arrependimento: “O que estou fazendo aqui?”, questiona-se. Ouve a batuta do maestro bater três vezes e descobre que não há mais como retroceder. O breve silêncio que antecede a execução não permite hesitação. Os lábios tocam levemente o instrumento, os dedos fecham furos e a semínima da partitura ganha som. As notas impressas no papel saltam umas após as outras e flutuam no ar até se apagarem feito bolhas de sabão.

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Valeu cada noite de ensaio com a cara enfiada entre as roupas do armário para abafar o som, valeu cada tarde que não se encontrou com os amigos, valeu a manhã desse dia, cujo apetite sumira.

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A última nota soa no teatro e seguem-se aplausos efusivos. A flauta descansa, a partitura agora sorri. Quando a flautista deixa o teatro, há uma lua imensa e milhares de estrelas brilhantes. O ar é doce, ela jamais esquecerá. No terminal, o ônibus aguarda a menina que flutua, cheia de Si.