Não havia esta árvore aqui. Ou nunca a percebi. Paro à sua sombra, afrouxo a guia e meu cachorro deita-se sobre o cimento da calçada. Hoje tenho tempo. Avisto no horizonte, depois de um loja de fast food e um hipermercado, o centro de eventos, que tinha como projeto inicial ser o Teatro Municipal. Cachorro transpira pela língua, ouvi dizer. Ele me olha como quem aguarda comando. Faço carinho com o pé sobre suas costas, ele deita a cabeça até encostá-la no chão e observa o trânsito, pequeno a essa hora. Volto a olhar o centro de eventos e lembro de um projeto de um amigo, que uma vez por semana armava sua câmera em frente à construção para registrar o andamento das obras. Tempo condensado nos bytes do cartão de memórias.
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Meninos chegam com seus skates para lançarem-se na pista, recosto-me na árvore, que eu juro que não estava ali, e observo que entre eles há uma menina de talvez catorze anos. Desliza suave nas ondulações da pista e salta dando um giro de 180 graus para cair em cima do skate novamente e descer a rampa com a vitória estampada no rosto. Uma mulher e seu filho aproximam-se de mim. Ela não deve ter mais do que vinte anos, imagino, e ele, julgo ter sete. Deve haver algo de errado em minha suposição. O menino pergunta se pode tocar no cachorro, e consinto. “Qual o nome dele?”; “Cachorro”; “Sério?”; “Uhum!”; “Quantos anos ele tem?”; “Está perto de fazer quinze”; “Mais velho que eu”; “Bem mais velho”; “Já deve ter vivido muitas coisas…”; “Sim, ele tem um imenso passado para lembrar”.
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Ele acaricia o Cachorro com ambas as mãos, tocando a parte de trás das orelhas, depois levanta-lhe o focinho suavemente.
– Espero que você tenha boas histórias para lembrar, Cachorro.
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A mãe o olha com ternura, e a mim, com cumplicidade. O menino levanta-se sem tirar os olhos de Cachorro. “Eu tenho um passado pequeno”; “Você é jovem ainda”. A mãe conta-me que ele passou quatro anos em coma, depois de um acidente, “não tem muito passado para lembrar ainda”.
Despeço-me e continuo o passeio. Repasso meu passado e tenho a sensação de que também tenho um passado pequeno. “Onde eu estive esse tempo todo?”. Cachorro me observa e baixa os olhos com indignação.