Há tantos assuntos povoando a mente do escritor, tanta ideologia para se fazer coro e gritar o que sufoca a alma! Deveria ele aproveitar este espaço no jornal para dizer que o mundo anda matando o desejo de viver; para falar das mulheres submetidas a humilhações em becos escuros e delegacias; para falar do quanto o País retrocedeu com a aventura golpista dos que estão no poder. Mas bastou este parágrafo.

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Ele põe foco para não morrer de desesperança no que constrói diariamente do portão para dentro de sua casa. Algumas pessoas o chamam de poeta, com o que ele não concorda. Diz que acerta, às vezes, uma combinação de palavras, e é tudo o que acredita poetizar em meio às linhas que escreve. Mas porque o consideram poeta, vem a reboque a fama de romântico (seus olhos levemente caídos reforçam o aspecto triste e apaixonado). Vez ou outra, manda flores. Mas cada vez que o calendário aponta um novo dia, sente que romantismo e dialética são confundidos. Nem todo amor é dito em palavras; nem toda palavra é amor. A bem da verdade, o amor pode ser demonstrado de maneira tão banal quanto imperceptível, em atitudes diárias.

Veja que, mesmo não gostando de comer as pontas dos pães, onde há mais casca que miolo, ele come para que sua esposa fique com a melhor parte. Tão romântico quanto mandar flores é oferecer a melhor parte, o último pedaço; é não acender a luz do quarto enquanto ela está dormindo; é perguntar como foi seu dia, e ouvir.

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Diante de um mundo que retrocede, de pessoas que agem com crueldade medieval, de uma sociedade em que tiranos brincam com a vida do povo da maneira mais despótica possível, o escritor decide calar. Por hoje. Quem tem olhos para ver, que veja, na mídia e nas redes sociais, o momento triste que vivemos. O escritor prefere, hoje, falar de quando fecha o portão e habita seu próprio reino com dois quartos, sala, cozinha e um jardim; quando olha para o lado e vê a mulher que o faz melhor, e para quem entregará sempre a melhor parte do que estiver saboreando, e a melhor parte de si.

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