Acompanhava-o, no bolso da calça ou no vazio da carteira, o corolário de um desemprego há pouco conquistado. Tal sorte nunca vem sozinha, pois que a namorada confessou amor por outro e partiu sem olhar para trás, deixando-o com a lembrança febril de uns quadris a oscilar para a esquerda e para a direita acenando tchau. A última prestação do aparelho de som fora paga dias antes e era o que ele tinha de seu, de fato, com nota fiscal, como disse-lhe um amigo. Porque emprego e mulher oscilam como roupa num varal.

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O que era, de fato, seu servia-lhe num dos momentos mais difíceis da vida. Era no aparelho de som que ele colocava e repetia os discos de seus cantores preferidos, ouvindo-os a dormitar. Era no quarto de sua casa que ele repousava fracasso e sonhava futuro.

Descanso também cansa, o corpo pedia movimento, a alma exasperava e, num impulso, saltou da cama com energia. A água do chuveiro escorria lavando preguiça, peito voltava a acender. Vestiu-se de roupa casual e saiu. Era ideia do moço tomar sol e ver gente, mas o caminho pelas ruas do bairro e a pobreza exposta desanimaram o andante, que se sentiu-se de novo, lixo. Subiu em ônibus de linha qualquer e chegou ao Centro da cidade, procurou pelo bar mais tétrico, de copo mais sujo, onde tomaria cachaça, um modo de afogar baixo-astral. Mas, no caminho, passou por um shopping e, sabe-se lá por que ironia, decidiu entrar. Parou diante do cinema e leu no cartaz que era dia de promoção, que a entrada custava o preço de uma pinga, mexeu no bolso e desamassou a nota que trazia. Entrou e sentou-se. Diante dele, outras doze pessoas. A música que antecedia a sessão levava-o a uma outra época e o som do mundo foi diminuindo até que as vicissitudes da sua triste existência ficaram do lado de fora.

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Luzes apagadas, tela acesa para “O Carteiro e o Poeta”. Pouco mais de uma hora de Neruda, de romance e metáforas. Ao final da sessão, as luzes não se acenderam abruptamente, como se faz hoje, a espantar cliente; esperaram o final dos créditos e, só então, foram acesas, uma a uma, respeitando a emoção do público. Os doze levantaram-se lentamente e, ao sair, acenavam com a cabeça para o moço, que retribuía com aceno e sorriso. Lá fora, o mundo voltava a ter poesia.

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A sala de cinema será reaberta nesta semana. O moço recomeçou, viveu novas emoções e virou cronista.